Crise europeia e resgate da utopia social

Por Giovanni Alves.

A crise europeia, tal como a esfinge grega, provoca-nos com seu enigma: “decifra-me ou devoro-te!” Não se trata de mais uma crise europeia, mas sim, expressão mais plena da crise de civilização que atinge o sistema mundial do capital. O que se expõe na primeira década do século XXI é o desmonte do “modelo social” de civilização do capital que continha as mais candentes ilusões sobre a possibilidade de conciliar capitalismo e bem-estar social no bojo da União Europeia como modelo histórico de integração econômica bem-sucedida. Portanto, a crise do Euro é expressão-mor da crise da civilização do capital.

Em pouco mais de uma década do novo milênio, o capitalismo global expôs a sua dimensão de barbárie histórica. Primeiro, com os atentados terroristas ao World Trade Center, em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001; e depois, como crônica de uma morte anunciada, com a crise financeira de 2008, que se origina nos EUA com a crise do subprime e dissemina-se, mais tarde, em 2011, para os países da Zona do Euro, com a crise das dívidas soberanas, ameaçando implodir a partir da semi-periferia europeia as promessas de unificação europeia.

No caso da crise europeia, não podemos vê-la tão-somente como crise financeira. A interpretação de direita sobre a crise europeia, interpretação hegemônica que seduz a opinião pública, inclusive de esquerda, é que ela se reduz ao problema de déficits orçamentários e da elevação da dívida pública. Imputa-se, deste modo, a crise à incapacidade de gestão dos Estados da semi-periferia europeia (os PIGS – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Essa perspectiva analítica conduz à receita da austeridade orçamentária que, além da transferência do peso da dívida para as classes populares, levará, num segundo momento da crise (como se vislumbra em 2012), os países europeus (inclusive Alemanha e França), a mergulharem na recessão. Mais uma vez, as classes populares – incluindo a “classe média” assalariada – serão penalizadas.

A crise europeia é manifestação contingente da crise do capitalismo global com dominância financeira. Ela expõe a dimensão de crise estrutural do capital no sentido de crise de civilização. A crise financeira apenas aprofunda e expõe com intensidade as contradições estruturais da ordem burguesa hipertardia no núcleo orgânico do sistema mundial do capital.

A crise europeia não se trata apenas da crise do neoliberalismo, como se pudessemos imaginar que outro capitalismo seria possível nas condições históricas da crise estrutural do capital, isto é, um capitalismo regulado de cariz pós-neoliberal que resgate o ideário fordista-keynesiano, conciliando crescimento da economia e bem-estar social. Mesmo experiências de crescimento da economia capitalista de viés pós-neoliberal que ocorreram na última década, por exemplo, no Brasil e na China, apesar do sucesso relativo no combate à pobreza absoluta, são experiências de modernização capitalista hipertardia incapazes de resgatarem historicamente as promessas de cidadania salarial e bem-estar social constituídas nas primeiras décadas do pós-guerra nos países capitalistas centrais.

No plano midiático, existe um movimento de claro-escuro que oculta da percepção de homens e mulheres, o verdadeiro significado histórico da crise europeia. Não apenas a direita conservadora, mas a esquerda social-democrata e socialista e seus intelectuais orgânicos, não expõem (nem podem expor) no plano do discurso político, a crise estrutural do capital, tanto na personificação do mercado deformado pelos interesses do capital especulativo-parasitário; quanto na personificação do Estado político e sua democracia liberal corroída pelos interesses da privataria financeira. Existe no debate político (e inclusive, acadêmico) uma densa névoa ideológica que oculta a natureza da nossa crise histórica. Por exemplo, na academia, o espírito do pós-modernismo e o neopositivismo contribuíram para a cegueira ideológica que impede a percepção crítica do mundo histórico.

Na verdade, mais do que nunca, explicita-se como efetivamente atual, a denominação do capitalismo histórico do século XXI como “capitalismo manipulatório”. O adjetivo “manipulatório” não é apenas uma qualificação contingente, mas um traço essencial para a reprodução sistêmica da civilização do capital. Na medida em que agudizam-se as contradições sociais no plano mundial, impõe-se com vigor, no estágio avançado de dominância do fetichismo da mercadoria, a manipulação da subjetividade humana de acordo com os interesses da classe do capital. 

É provável que as sociedades europeias retomem, daqui a alguns anos, a trajetória de crescimento do PIB depois da profunda recessão da economia da Zona do Euro, pelo menos em sua semi-periferia devorada pelas políticas de austeridade neoliberal (Portugal, Espanha, Itália e Grécia). Como temos salientado, crise estrutural do capital não significa irremediavelmente estagnação da economia capitalista. Entretanto, o que preocupa os analistas sociais é o novo “modelo social” que nasce da Europa pós-crise, isto é, uma Europa clivada de desigualdades sociais e concentração de renda, muito distante do Welfare State festejado pela social-democracia com sua ideologia da concertação social. Deve-se aprofundar a precariedade laboral, principalmente entre os jovens trabalhadores, ameaçados pelo desemprego de longa duração e pelo trabalho precário. Como Kronos, deus grego do tempo cronológico, o capitalismo devora seus próprios filhos.

David Harvey observa em seu último livro, O enigma do capital e as crises do capitalismo (recém-publicado no Brasil pela Boitempo [à venda em ebook na Gato Sabido e Livraria Cultura]) que as crises no capitalismo são, não apenas inevitáveis, mas também necessárias, pois, diz ele, “constituem a única maneira de restaurar o equilíbrio e de resolver, pelo menos temporariamente, as contradições internas da acumulação do capital.” E conclui: “As crises são os racionalizadores irracionais de um capitalismo sempre instável”.

Ora, se as crises são os “racionalizadores irracionais de um capitalismo sempre instável”, como tem sido o capitalismo global em sua fase de dominância financeira, o que temos que nos interrogar é o que está a ser racionalizado aqui e que direções estão a tomar essas racionalizações perversas do capital, pois serão elas que definirão nossa maneira de sair da crise como o caráter futuro do capitalismo.  

Na verdade, ocorre hoje o esgotamento de um ciclo histórico civilizacional. O que se observa é que a crise europeia expõe, com vigor, aquilo que István Meszáros indicou em Para além do Capital [à venda em ebook na Gato Sabido e Livraria Cultura], como sendo a vigência da equalização descendente das taxas de exploração diferencial no plano do mercado mundial, que impulsiona a corrosão irremediável, lenta e persistente, dos pilares sociais do capitalismo europeu, principalmente nos países da Europa mediterrânea, com posição em desvantagem no plano da concorrência internacional. Trata-se de uma lei tendencial imposta pelo capitalismo global sob dominância financeira, conduzido pelas políticas neoliberais. É claro que a operação da lei histórica depende das opções políticas em disputa e da luta de classes que ocorrerão na Europa na década de 2010. Entretanto, o aumento da desigualdade social nas últimas décadas de capitalismo neoliberal no pólo desenvolvido do capitalismo global (EUA, União Européia e Japão), expressa com clareza inaudita, o movimento de equalização descendente das taxas de exploração diferencial. Portanto, com a crise europeia, a precariedade laboral e o desemprego estrutural devem se ampliar, mesmo que as economias capitalistas consigam retomar o crescimento do PIB. O que significa que a crise europeia é tão-somente o momento mais candente de um processo de longa duração de desmonte do Estado social europeu que ocorre nos “trinta anos perversos” de capitalismo neoliberal – desmonte social, diga-se de passagem, levado a cabo tanto pelos partidos de direita, quanto pelos partidos da esquerda social-democrata e socialista.

A crise europeia possui um valor heurístico: ela expõe, com vigor, os traços essenciais da miséria do capitalismo global com dominância financeira. Na verdade, crise não significa tão-somente riscos, mas pode significar também oportunidades de percepção cognitiva dos elementos compositivos da tragédia histórica da civilização do capital. Podemos salientar como traços históricos essenciais do metabolismo social do capital nos “trinta anos perversos” (1980-2010) os seguintes elementos compositivos:

1. A deformação intelectual-moral das forças políticas das classes populares, o que significa que a crise europeia é não apenas crise financeira ou crise da economia capitalista, mas crise moral-intelectual das forças de esquerda socialista. É crise política irremediável da social-democracia, na medida em que se explicita, com vigor, a perda de credibilidade política de lideranças socialistas que aplicaram, ao lado da direita conservadora, medidas de austeridade neoliberal contra as classes populares. Contra a crise de credibilidade política, a social-democracia e seus intelectuais orgânicos incrementam o jogo do ilusionismo política, imputando tão-somente à direita a responsabilidade pelo “inferno social” criado pelas políticas de austeridade. Eles tentam ser a alternativa credível nas próximas eleições democráticas. Enfim, a deformação intelectual-moral das forças políticas ativa o pêndulo perverso dos operadores da política do capital, que oscila entre a direita conservadora e a esquerda social-democrata. Todos eles pertencem ao espectro do neoliberalismo hegemônico.

No plano do metabolismo social, a deformação intelectual-moral das forças políticas das classes populares alimenta (e tende a reforçar) dois processos sociais lúgubres do movimento do capital no século XX. Primeiro, o processo de imbecilização das massas populares pela indústria cultural – incluindo a classe média assalariada. Segundo, a “presentificação crônica” na qual vivem imersos os jovens e o rompimento dos laços geracionais com o passado histórico. Diz-nos Eric Hobsbawn no livro A era dos extremos (de 2001): “A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”.

Portanto, a crise europeia não é apenas crise da política social-democrata e socialista, como salientamos acima, mas também crise irremediável do pensamento europeu hegemônico que legitimou, no plano epistemológico, a ordem social-democrata. Nos “trinta anos perversos”, incapazes de fazer a crítica radical do capitalismo, uma série de autores legitimaram direta ou indiretamente, a ideologia da concertação social (como por exemplo, Jürgen Habermas e Anthony Giddens). O esclerosamento do pensamento crítico europeu impediu a percepção lúcida do significado da crise europeia. Gerações e gerações de jovens licenciados foram educados nas universidades europeias na visão de mundo neopositivista e pós-modernista e encontram-se hoje desarmados para efetuarem, no plano do pensamento, a crítica da ordem burguesa senil. Trata-se da miséria espiritual que aflige a “geração à rasca” (como se diz em Portugal).  De fato, esses jovens, homens e mulheres, licenciados, com títulos de mestres e doutores, encontram-se órfãos não apenas das promessas do Estado de Bem-estar social, mas da visão crítica de mundo, incapazes de perceberem o sentido radical da crise europeia. Sob as condições da miséria espiritual das massas, o capitalismo manipultaório tende a reforçar novas dimensões do irracionalismo social.

2. Nos “trinta anos perversos” sob hegemonia neoliberal, as políticas de privatizações contribuíram para que o Estado político do capital se reduzisse cada vez mais ao mercado. A redução do seu tamanho na economia nacional, criando espaços de produção de valor, ocorre pari passu com a redução do Estado social. As políticas neoconservadoras hegemônicas tendem a abolir a universalização de direitos sociais, adotando-se a focalização de políticas sociais nos segmentos mais candentes da população. Não se trata de “Estado mínimo” para o capital, mas sim “Estado mínimo” para o trabalho. Os grupos capitalistas continuam a aproveitar-se do fundo público com as transferências de riqueza da sociedade para o mercado por meio do aumento de impostos (bancos e corporações industriais e financeiras, como se comprovam pelos juros pagos a título de pagamento da dívida pública). Enquanto isso, cortam-se direitos sociais dos trabalhadores e reduzem-se investimentos na saúde, educação e serviços públicos em geral.

3. A democracia política se reduz a “democracia representativa” moldada por leis eleitorais que deformam a vontade popular. Mais do que nunca, torna-se impossível conciliar verdadeira democracia e capitalismo histórico. As democracias ocidentais reduzem-se àquilo que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos denominou de “democracia de baixa intensidade”. Nos últimos trinta anos aprofundou-se a crise de legitimidade das democracias europeias. Na verdade, com a crise europeia, os impasses políticos sob determinadas circunstâncias, como ocorreu na Grécia e Itália, impõe a própria abolição efetiva da democracia representativa e a instauração da “democracia dos mercados” com a indicação pelos mercados de tecnocratas para conduzirem governos de maioria parlamentar. Mais um elemento heurístico da crise que desvela a farsa da democracia no capitalismo. Ao mesmo tempo, apela-se, com uma intensidade diretamente proporcional à dimensão da crise de legitimidade democrática, para o ilusionismo político visando ocultar a situação farsesca, pois a farsa pressupõe manipulação de alta intensidade que caracteriza o capitalismo manipulatório nos últimos trinta anos.

A crise estrutural do capital possui um valor heurístico. Ela nos obriga a colocar, como pressuposto da crítica radical, a interrogação sobre as alternativas necessárias capazes de resgatar as esperanças no futuro da civilização humana. A crise do capitalismo global sob dominância financeira e a barbárie social como modo de sociometabolismo dominante colocam cada vez mais a necessidade candente do controle social, caso queiramos resgatar os valores da civilização humana vilipendiados pelo movimento do capital. Na verdade, torna-se urgente, no plano do pensamento e da atividade política, a reposição da utopia socialista radical como controle social. Isto é, coloca-se como necessidade social a democratização radical da sociedade, o que conduziria efetivamente à abolição do capital como modo estranhado de metabolismo social.

A ideia de socialismo no século XX foi degradada no sentido da sua deformação tanto pela social-democracia, quanto pelo stalinismo. A utopia socialista pode ser traduzida tão somente na ideia do controle social ou democratização radical da sociedade. Portanto, põe-se como tarefa histórica necessária e urgente a luta pela democratização radical com tudo aquilo que isto implica, tanto no plano do Estado político, quanto do trabalho e na vida cotidiana ou espaços de sociabilidade e relações sociais.

Deste modo, podemos salientar como tarefas históricas necessárias, cada vez mais auto-evidente no século XXI para o resgate da utopia social:

1. A formação de sujeitos humanos capazes de intervenção coletiva social e política. Eis o maior desafio da esquerda radical: resgatar homens e mulheres da imbecilização de massa produzido pelo capitalismo manipulatorio do século XX sob as condições históricas do fetichismo da mercadoria. Trata-se de construir por meio das lutas sociais e da reflexão crítica, um pensamento e subjetividade contra-hegemônicos, um processo de formação moral-intelectual das massas que não se confunde com doutrinação política. Esta é a tarefa histórico-política mais difícil, tendo em vista que exige uma nova metodologia social capaz de formar os sentidos humanos numa época de barbárie social.

Os “trinta anos perversos” de neoliberalismo foram anos de revolução cultural conservadora e a esquerda histórica comunista ou trotskistas não conseguiu se contrapor efetivamente à cultura neoliberal hegemônica com seus valores-fetiches de mercado (individualismo e consumismo). Pelo contrário, a esquerda comunista ou trotskista reduziu a sua intervenção prático-sensível à luta política e ao sindicalismo propriamente dito. A esfera cultural onde se opera a formação humana ainda é, hoje, um campo exclusivo de intervenção hegemônica inovadora do capital.

2. A luta política pela “estatização” das instâncias estratégicas de produção e reprodução da sociedade, ou seja, impulsionar o movimento reverso das políticas de privatizações que caracterizaram o movimento do capital nas últimas décadas, inclusive sobre governos ditos de esquerda. Eis o momento tático das alianças com forças políticas pós-neoliberais.

Mas é importante salientar que colocamos “estatização” entre aspas, tendo em vista que o Estado que diz respeito ao movimento de emancipação social não é o Estado político do capital. Eis o momento de divergência política radical com as forças políticas pós-neoliberais: o movimento de “estatização” necessário implica irremediavelmente, ao mesmo tempo, caso queira aparecer como movimento emancipatório, a terceira tarefa histórica: a democratização radical do Estado político.

3. A democratização radical do Estado político significa, no limite, a sua irremediável extinção no sentido processual. Resgata-se, deste modo, o ideal comunista clássico. Enfim, a vigência da democratização radical é, nada mais e nada menos, que o socialismo na sua acepção verdadeira. Não se trata de proclamar tão-somente o valor da “democracia de alta intensidade”, como diz Boaventura de Sousa Santos, mas sim, de re-afirmá-la na perspectiva da classe social do proletariado (o pós-modernismo de Boaventura de Souza Santos perde substância crítica na medida em que tende a ocultar o conteúdo de classe do processo de democratização radical). Enfim, é preciso qualificar o processo de democratização radical como re-apropriação do poder social pela classe-que-vive-do-trabalho, a imensa maioria da população humana alienada do poder decisório sobre as instâncias estratégicas da vida social.

Entretanto, a democratização radical pressupõe homens e mulheres capazes de auto-apropriação das objetivações sócio-técnicas constituídas no decorrer do processo civilizatório do capital. Entretanto, na medida em que o processo de desenvolvimento sócio-técnico até o presente tem se caracterizado pela alienação, o sociometabolismo do capital tem (de)formado e incapacitado homens e mulheres para o processo de auto-apropriação autônoma e criativa do mundo social. O modo de produção capitalista não é apenas um modo de produção de mercadorias, mas modo de produção (e reprodução) de homens e mulheres deformados em suas capacidades humano-genéricas. Por isso, uma das maiores tarefas históricas do processo de emancipação social é formar sujeitos humanos coletivamente autônomos, criativos e inovadores, capazes de constituírem a troca orgânica emancipada entre si e a natureza. Por isso, a terceira tarefa histórica – a democratização radical – pressupõe irremediavelmente a primeira tarefa política como movimento histórico de luta de classes: a centralidade da atividade de formação humano-genérica.

Eis, portanto, um breve esboço das linhas estratégicas de intervenção prático-sensível que a intelectualidade política radical comprometida com a emancipação social é levada necessariamente a adotar sob pena de reiterar tão-somente a miséria do capital no século XXI. O papel (e a responsabilidade política) do cientista social é tornar claro as possibilidades efetivas do desenvolvimento humano-social nas condições históricas da crise estrutural do capital como sistema estranhado de controle sociometabólico. Para se contrapor ao neoliberalismo de mercado não podemos adotar, numa perspectiva estratégica, tão-somente a ideologia do pós-neoliberalismo que propugna, em última instância, o fortalecimento do Estado político do capital a título de garantir a acumulação privada e a concorrência (o pós-neoliberalismo como neoliberalismo restringido) visando conciliá-la com um programa mínimo de bem-estar social. Na verdade, a lei do valor afetada de negação, não dá margens à concessões civilizatórias no âmbito das relações sociais baseadas na propriedade privada e na divisão hierárquica do trabalho.

O desenvolvimento histórico explicita, no plano da percepção do bom senso, que cada vez mais Estado político e mercado se confundem, diferenciando-se tão-somente pelas margens de ação política e intervenção social minimalista que permitem políticas sociais compensatórias, principalmente nos países com “carecimento de modernidade” (como o Brasil). É claro que, no plano tático-político, não podemos desprezar as diferenças de espaço de ação política como espaço de acumulação de força, ou melhor, espaços de formação de classe como sujeito histórico. Mas, na medida em que existem espaços de formação, coloca-se a necessidade ineliminável da direção política consciente capaz de hegemonia estratégica no sentido de alargar as possibilidades da intervenção social intervertendo o pós-neoliberalismo como campo de transição para a democratização radical da sociedade, o verdadeiro sentido do socialismo do século XXI, que não deve se confundir com as experiências pós-capitalistas do dito “socialismo real”, prisioneiro das determinações negativas do capital. Eis o verdadeiro sentido da arte da política que o mercado concentrado sob dominância do capital financeiro busca eliminar.

***

O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura.

***

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

1 comentário em Crise europeia e resgate da utopia social

  1. Meu caro Giovanni,
    Alguns pequenos comentários, já que, tratando-se de um amigo, ainda tenho esperança que você um dia questione as suas certezas neste dominio: 1) o texto é tão longo que só mesmo os teus fãs incondicionais conseguem lê-lo até ao fim (que é o meu caso, ou parece ser; deste modo vc nao vai conseguir reeducar a juventude…)
    2) Primeiro, alguns conselhos: a) se o número de vezes que você usa o termo «capital» fosse reduzido a metade, ou menos, o texto pareceria mais credível e seria menos dogmático; b) se voce conseguisse despir o texto da carga moralista, pelo menos um pouco, tudo seria diferente e sua critica ao capitalismo selvagem seia mais consistente; c) vc fala como se possuísse toda a verdade do seu lado e como se tudo fosse explicável pelas “tenebrosas” intenções do capital, cuja “névoa ideológica” só vc (com ou sem a ajuda de Harvey, Zisek, Mezáros e outros iluminados) é capaz de vislumbrar e combater?!; os intelectuais europeus e o pensamento crítico são todos varridos e atirados no poço das cedências ao capital… 3) e depois, qual a alternativa que apresenta? O que é isso da “utopia socialista radical”? Será através de uma “estatização” radical segundo a «perspetiva da classe social do proletariado» ou da sua «classe-que-vive-do-trabalho»? Vc ainda um dia há-de explicar-me onde é que está esse «sujeito», esse ator coletivo (omnisciente) que você tanto coloca entre aspas? (acho bem que fique sempre entre aspas porque isso só existe mesmo é no papel…); Ou então por que não assume mesmo a ortodoxia e fala de «vanguarda operária»; ao menos aí era coerente com o leninismo!!
    4) Como travar, inverter, contrariar “o processo de imbecilização das massas populares”? aprisionando e extinguindo todo o negócio privado, todo o mercado? toda a propriedade? e quem controla esse processo? das duas uma: ou são os cidadãos depois de devidamente “educados” e do Estado ser extinto; ou é através de uma qualquer vanguarda esclarecida (é isso o socialismo radical?.. mas esse modelo ja foi experimentado na URSS, em Cuba , etc…)…
    Mais a Sério: todos nós, intelectuais de esquerda, preocupados com os descaminhos e injustiças que enfrentamos precisamos de entrar saídas. Ninguém as possui. É preciso criticar o capitalismo, sim. Apontar-lhe as contradições e o risco de caminharmos para o desastre. Mas para isso precisamos de um pouco mais de humildade intelectual. De acabar com essa vertigem maniqueísta. E no teu discurso está um pressuposto: ele assenta numa visão maniqueísta das do mundo, a qual, na minha modesta opinião não ajuda muito a encontrar as alternativas emancipatórias que todos procuramos. Mas atenção: não há mundos perfeitos!!! Por isso mesmo a «utopia» deve ser ser relativizada.

    Curtir

Deixe um comentário