Natal com neve
Chico Gui tinha um sonho: passar um Natal com neve, e com muita oração.
Quem era Chico Gui?
Era Francisco Guilherme Müller Schmidt, nascido em Teutônia, então uma vila da colônia alemã no Rio Grande do Sul, Brasil. Lá ele passou a infância.
Mas depois a família se mudou. Foi para Porto Alegre, a capital do estado. Ele cursou a universidade e se formou em Jornalismo. Foi morar em São Paulo. No seu trabalho, numa redação de jornal, Francisco Guilherme Muller Schmidt virou Chico Gui.
Nunca esqueceu da sua cidade natal, nem dos natais de sua casa. Eram natais de uma pequena vila do interior. À noite, a família se reunia ao redor de um pinheiro iluminado, e rezava. As crianças ganhavam chocolates, porque a mãe dizia que era assim que acontecia, na Alemanha, de onde os pais dela tinham vindo, ainda pequenos, antes da Guerra. E os agora avós confirmavam.
Mas tinha uma coisa errada nesses natais: era verão. Por que era verão? Porque o Brasil fica no hemisfério sul, e o Natal, no hemisfério sul, acontece no verão. E o Chico Gui sonhava com os natais que seus avós contavam ter passado na Alemanha, cheios de neve, e todos indo à igreja rezar, na pequena aldeia em que moravam, cantando “Stille Nacht, Heil’ge Nacht”, no Brasil, “Noite Feliz”.
Além disso, o Natal no Brasil foi perdendo o ar religioso. Virou uma grande festa, meio como se fosse Carnaval: muita música, muito fogo de artifício, samba, alegria, cerveja. Chico Gui gostava daquilo. Mas sentia saudade do Natal recolhido, em Teutônia, com a família e as orações. E do Natal que nunca vira, o dos avós, cheio de neve e mais orações.
Chico Gui viu neve no Brasil. Certa vez foi visitar os avós em Teutônia, no mês de julho. Fez muito frio naquele ano, e nevou em Teutônia, quando o Chico Gui estava lá. Para ele foi muito bonito. Tirou fotos. Mas ficou com uma sensação de que a neve viera fora de época, porque não era Natal.
Mas um dia a oportunidade que Chico Gui esperava se apresentou. Ele tirou férias em dezembro, e decidiu fazer uma viagem a Berlim. Queria visitar uma prima distante, que morava há muito tempo na capital alemã. E lá se foi ele, cheio de esperança. Veria um Natal com neve, e entraria numa capela, numa igreja, para rezar, como fazia quando criança, com os pais e avós, em Teutônia.
Chico Gui chegou em Berlim em meados de dezembro. A prima foi esperá-lo no aeroporto. Uma graça de pessoa, que ele não via desde criança. A simpatia mútua foi imediata. Chico tinha um hotel reservado, mas ela convidou-o para ficar na casa dela. Podia dormir no sofá da sala. Ele topou.
Tinham se encontrado apenas algumas vezes, quando crianças. A avó paterna dela, que também emigrara da Alemanha para o Brasil, era prima do avô materno de Chico. Ou algo assim.
Passaram um tempo encantador. Visitaram muita coisa em Berlim. O portão de Brandemburgo. O Reichstag, a Porta de Ishtar no Pergamon. O que restava do Muro. E assim por diante. Berlim não tinha segredos para a prima. Nem ela teve para ele.
Mas a prima – que se chamava Elisabete Amália – notou que o primo estava inquieto.
– Por quê? Ela perguntou.
– É que não há neve, respondeu o primo. O que está acontecendo?
– É, devia haver, disse a prima. Vai ver que é o aquecimento global.
A explicação não acalmou o Chico Gui. Que azar! Logo agora! Mas que fazer? Bom, esperar o Natal, ver se nevaria, e, pelo menos, rezar numa igreja, como nos velhos tempos.
Chico Gui se deliciava. Curtiu os fins de semana do Advento, coisa que não se comemora no Brasil. Houve dois fins de semana do Advento, antes do Natal. E ele e a prima acendiam as velas, e se divertiam fazendo jantares. Ele gostava de cozinhar carnes, ela, peixes. E tomavam vinhos. Apesar da decepção pela falta de neve, o Chico Gui estava encantado. Ele adorava o jeito com que ela conhecia e lhe mostrava a cidade, e a sua história. E ela adorava o jeito com que ele contava histórias dos tempos de infância, em Teutônia, histórias que ela nem lembrava mais, não sabia se eram mesmo de verdade. Não importava.
Bom, enfim chegou o Natal. Sem neve. Mas os dois primos saíram, no dia 24, pela cidade. Passearam. Foram ao Krumme Lanke. Quando viram, estavam de mãos dadas no meio das árvores. Beijaram-se. O Chico Gui disse que ele tivera umas namoradas. Nada sério. Nada que tivesse deixado saudades.
Ela viera para a Alemanha por causa de uma grande paixão. A paixão naufragara. Ela sobrevivera. Mas o coração se fechara.
Depois dessas confidências e mais alguns beijos, voltaram a passear pela cidade. O Chico adorou as luzinhas fabricadas em Hong Kong, grudadas nas árvores. As vitrines coloridas. A multidão nas ruas, fazendo compras como em todo o mundo. Os bonequinhos de neve – na verdade, de plástico – nas janelas dos apartamentos. O Chico até lembrou dos algodões de sua infância, que fingiam ser neve nos pinheiros brasileiros, em pleno verão. Passearam mais. De tanto passear, quando se deram conta era tarde.
– Chi, disse ela, olhando no olho dele.
– Não faz mal, disse ele. Vamos rezar amanhã.
Foram para casa. Pela primeira vez, o sofá da sala ficou intocado. E o amanhecer surpreendeu roupas pelo chão no quarto dela, e as janelas, se contassem o que tinham vislumbrado durante a noite, falariam de uma certa fragrância de amor.
Tomaram o café da manhã com pressa. Era tarde. E saíram pela cidade, atrás de uma igreja, onde ele pudesse rezar.
Que problema! Foram de igreja em igreja: todas fechadas. Em algumas, nada anunciado. Em outras, um cartaz: “Heute, 16:00 Uhr: Konzert. Bach, Händel, Haydn” etc. Ainda numa outra, em inglês: “Today, 17h00: Gospel Music, Alabama Soul Singers”.
Mas nada, nenhuma porta aberta. Reza? Nenhuma. Onde?
E andaram e andaram, e tomaram o metrô e alguns ônibus. De nada adiantou. Todas as igrejas estavam fechadas!
Até que…
Depois de baterem nas portas fechadas da Marienkirche, na Alexanderplatz, eles foram até a Nikolaikirche, logo adiante.
Estava aberta! E era o prédio mais antigo de Berlim! O coração de Chico Gui tremeu! Que realização do seu sonho! Apesar da falta de neve, rezar na igreja mais velha da antiga e nova capital alemã!
Abriram a porta. Na entrada, um simpático… O quê? Um porteiro? Um funcionário? Ele os recebeu. E apontou a bilheteria. Havia uma exposição na igreja. Pinturas antigas. Cinco euros a entrada.
O Chico Gui, que não sabia falar alemão, pediu pra prima que explicasse ao simpático velhinho (fosse o que fosse, era um velhinho):
– Por favor, diga a ele que eu não quero ver a exposição. Eu só quero entrar e rezar um pouco.
Ela traduziu:
– Er sagt er möchte die Ausstellung gar nicht besuchen. Er möchte nur ganz kurz in die Kirche hinein um zu beten.
O velhinho teve um sorriso compreensivo. E disse:
– Können Sie bitte Ihren Freund sagen, dass der lieber Gott nicht mehr hier wohnt. Das ist jetzt ein Museum.
Ela traduziu:
– Ele me pediu para te dizer que o bom Deus não mora mais aqui. Isso agora é um museu. Faz muito tempo.
O Chico Gui arregalou os olhos e disse à prima:
– E agora?
– Sei lá, disse a prima. Vamos visitar a exposição, quem sabe?
O Chico Gui sentiu-se roubado. Disse:
– De jeito nenhum. Vamos embora!
E saíram.
Mas a fúria dele durou pouco. A prima levou-o para passear. Afinal, não estava tão frio… Acabaram sentados no restaurante da casa de Brecht e Helène Weigel, na Chausseestrasse, que, surpreendentemente, estava aberto. Talvez, ele pensou, porque Brecht e Helene fossem comunistas, ateus, e não comemorassem o Natal, senão ali também haveria um concerto!
Ele confessou sua decepção. Sem neve, sem oração no dia de Natal, o que fazer, o que contar quando voltasse ao Brasil?
E ela lhe disse:
– Não te aconteceu nada de importante aqui em Berlim?
Então ele a olhou nos olhos. E viu a enorme capela de adoração que havia neles, aberta para que ele rezasse. E ele viu pontos luminosos naqueles olhos, como se fossem flocos de neve suspensos no ar. Outra confissão lhe veio: ele disse que a amava, que ela era o grande amor da sua vida. E que aquilo, para ele, era uma oração. Ela ficou vermelha, e abriu seu coração, como as portas de uma capela, de par em par. Disse tudo o que sentia.
Bom, vocês podem imaginar o que aconteceu.
Eles acabaram decidindo viver juntos. Por esses acasos da sorte, foram morar em Salvador, na Bahia. Falam até em ter filhos.
Ele é chefe da sucursal de uma importante revista, a Carta Capital, e ela trabalha no escritório da Attac na cidade.
Em dezembro, é claro, faz um calor de rachar.
Em compensação, tem 365 igrejas para rezarem, todas abertas o ano inteiro, inclusive no dia de Natal. E ele tem na parede uma foto com os avós, daquele dia de julho em que nevou em Teutônia.
Mas quando está na praia, depois de tomar umas três caipirinhas, se alguém lhe pergunta como encontrou seu grande amor, ele começa:
– Era dia de Natal. Caía uma terrível tempestade de neve em Berlim, e eu entrei na igreja mais antiga da cidade para rezar…
Ela sorri… E deixa rolar.
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda no Gato Sabido e na Livraria Cultura.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Adorei!
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Muito bom!!!!!
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