Crônicas de Berlim (10): As cicatrizes do futuro
O Terceiro Reich era para durar mil anos. Durou 12. Mas deixou atrás de si um rastro de morte, destruição e ódio. Além da destruição em outros países, deixou também uma Alemanha em escombros. Pior: deixou almas em ruínas.
Não me refiro apenas às vítimas. Penso também nos algozes.
Ao saber que o limite chegara, Hitler orgnazizou uma cerimônia em que ele e Eva Braun se casaram. Houve até brinde com champanhe. Quando eles se mataram, na tarde de 30 de abril de 1945, ele nomeou seu ministro de Propaganda, Joseph Goebbels, como novo chanceler. Mas não o nomeou Führer, isto é, mais que o líder, o guia. De maneira muito adequada nestas circunstâncias, ao saber da morte de Hitler, Goebbels declarou: “O coração da Alemanha cessou de bater. O Führer está morto”.
A seguir, no dia 1o de maio, Goebbels e sua esposa, Magda, se suicidaram. Até hoje há dúvidas sobre como, se ele atirou nela e depois nele, se ele se matou com um tiro e ela com veneno, ou se foram mortos por um guarda da SS. Mas não há dúvidas sobre uma coisa: antes de morrerem, eles assassinaram, com a ajuda de um dentista da SS, que lhes deu morfina, e do médico de Hitler, que lhes deu cianeto enquanto dormiam, os seus seis filhos.
A justificativa foi a de que não podiam conceber seus filhos vivendo num mundo sem o Terceiro Reich.
Essa combinação de acontecimentos macabros criou uma bolha metafórica. Deixaram atrás de si, além de vários cadáveres, um oco (o vazio do Führer, o coração da Alemanha que não bate mais), e a impossibilidade do futuro sem esse coração: o futuro tornou-se um prolongamento desse vazio. Pelo menos para quem acreditasse naquilo, ou seja, que o Führer fosse realmente aquele coração.
Hoje a esmagadora maioria dos alemães ainda tem de conviver com as ruínas que essa loucurália toda, inclusive com as almas em ruína que isso deixou. Mas há ainda que viva tudo isso com a mágoa do ressentimento, do futuro que não houve o que, como se sabe, é a única cicatriz que permanece como tal e como ferida por debaixo dela, sem fechar. Como uma ferida de superfície necrosada, uma úlcera hipertensiva, para ser mais preciso na imagem médica – e na histórica também, porque isso é sinal de uma alta pressão que pode explodir a qualquer momento.
Qual a razão para que uma pessoa viva isso dessa forma, fazendo do ressentimento histórico e do ódio a sua razão de vida? Talvez não haja uma única razão, haja várias, haja cadeias de acontecimentos que levem pessoas a assim acumularem esse potencial destrutivo dentro de si, até o momento de soltá-lo de maneira devastadora. Uma coisa é certa: depois que eles, o ressentimento e o ódio se deflagram combinados, raramente há volta. Não há espaço para o arrependimento, nem para o retorno: o procedimento de Goebbels e de Magda ilustra isso. Hitler, que não tinha filhos, matou seu adorado cão antes de morrer. Goebbels e Magda que, tanto quanto se sabe, não tinham cão, pelo menos naquele momento, mataram os filhos. Poderiam dizer que foi por uma forma torta de “misericórdia”. Talvez porque não suportassem a ideia de viverem na memória deles.
Segundo o Serviço de Inteligência alemão, há, entre os quase 82 milhões de habitantes desse país, 25 mil militantes com alguma atividade de extrema-direita. Desses, entre 9 e 10 mil estariam propensos a alguma forma de violência direta, que pode ir desde o ataque a sinagogas, a propriedades de imigrantes, ou mesmo atentados contra aqueles cuja presença, por si só, é uma agressão a esse ideal soterrado dentro de suas almas da existência de um Terceiro Reich de mil anos. Dentre esses 09 ou 10 mil, alguns, não todos, chegam às vias de fato. Mas, embora mínimos em relação ao todo, são devastadores. São como anjos da morte que evocam, dentro de si mesmos, aquele oco, aquele vazio de existência, deixado como herança por Hitler e Goebbels.
Foi o caso de um trio de neonazistas recentemente descobertos, dois homens e uma mulher que moravam na cidade de Zwickau. Durante vinte anos, treze dos quais na clandestinidade, eles desenvolveram atividades neonazis. De início, a descoberto, eram atividades de propaganda. Depois, a partir de 1998, partiram para ações diretas e mergulharam no segredo. Desde então tornaram-se responsáveis por dez assassinatos – sendo oito de negociantes turcos, um de um negociante grego e um de uma policial em Heilbronn – dois atentados a bomba de fragmentação com trinta feridos em Colônia e Düsseldorf– e pelo menos 14 assaltos a banco. No último assalto a banco, na cidade de Eisenach, os dois homens foram descobertos e cercados pela polícia. Na versão oficial, os dois repetiram os destinos trágicos de seus heróis legendários: um deles teria atirado no outro e depois atirado em si mesmo. A mulher, depois de explodir o apartamento em que o trio morava, se entregou.
Desde então não cessam de surgir descobertas e suspeitas surpreendentes e arrasadoras sobre o caso. Eles tinham uma rede de apoio de cerca de 20 pessoas, que lhes forneciam identidades falsas, armas, passaportes etc. Provavelmente (isso ainda se investiga) teriam algum tipo de acobertamento no aparato policial e do próprio Serviço Secreto. Suspeita-se agora que a policial em Heilbronn foi morta porque, contactada pelo grupo para colaborar, terminara se recusando: seria uma forma de vendetta e de aviso para outros.
Mas junto com isso tudo, o que mais despertou perplexidade foi a constatação de que o Serviço de Inteligência (BfV – Bundesamt für Verfassungschütz, em alemão: Agênciapara a Proteção da Constituição, literalmente) subestimara sempre não só a atividade desse grupo, como a de toda a extrema-direita alemã. Também se descobriu que nesse campo a colaboração entre esse Serviço e as polícias locais era mínima ou inexistente. Também ficou claro que, se é verdade que o número de extremistas dispostos à ação é mínimo, o número de simpatizantes próximos de suas idéias não é tão pequeno assim. Tomando-se a proporção dessa célula de Zwickau, pode-se conjeturar que para cada extremista desses há pelo menos três outras pessoas dispostas a ajudá-lo ou a acobertá-lo. Não falando de ideias difusas.
Pergunta-se se essa “cegueira” do Serviço de Informação se deveu a uma excessiva fixação na possibilidade do terrorismo de esquerda ou por parte de grupos islâmicos. Pode ser. Mas também mostra a dificuldade de se olhar, mesmo que de outros pontos de vista, para esse oco deixado como herança maldita pelo Reich e seus últimos próceres.
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda no Gato Sabido.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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