De bar em bar IX: Martinelli e outras lembranças

Por Mouzar Benedito.

— Nem pra beber a direita presta.

Esta foi minha grande conclusão ao olhar um bar que existe no térreo do prédio Martinelli, na fachada da rua Líbero Badaró, num final de tarde, quando Maluf era prefeito.

É que, durante o governo Erundina, muita gente que trabalhava em várias secretarias localizadas no prédio Martinelli ia tomar uma no bar, depois do expediente. Suplicy perdeu para Maluf a eleição para sucessão de Erundina, todos os cargos de confiança foram trocados, passando a ser ocupados por um pessoal de direita, e o bar ficou às moscas nos finais de tarde, pelo menos quando eu passei por lá. Parece que até os funcionários de carreira ficam influenciados pelos ocupantes dos postos de confiança, pois no nosso tempo, quando eu fazia uns trabalhos para a Secretaria da Habitação, eles participavam das nossas bebedeiras pós-expediente.

Às vezes eu parava pra tomar uma cerveja no bar na hora do almoço também, porque eu achava uma coisa muito divertida lá: pra mim, o entorno do Martinelli devia ser, na época, declarado protestódromo oficial de São Paulo. Havia no próprio Martinelli as secretarias municipais de Habitação e de Vias Públicas, a Emurb (empresa municipal de urbanização), mais alguns órgãos públicos que não me lembro e uns andares eram da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do Sindicato dos Bancários. Então, todos os dias tinha grupos protestando embaixo do prédio, seja reivindicando moradias, seja criticando os banqueiros ou seja lá o que for.

Só pelo tom de voz de quem protestava ou reivindicava, embora a às vezes não se ouvisse claramente o que gritavam ou cantavam, a gente já sabia que tipo de manifestação era e quem promovia. O Sindicato dos Bancários tinha um animador de protestos teatral e competente, que fazia paródias com músicas de sucesso e lançava palavras de ordem. Já os movimentos de moradia também cantavam mudando as letras das músicas de sucesso, mas dando um tom mais “revolucionário” ou pelo menos reivindicatório. O detalhe era que quem puxava a música geralmente era alguma freirinha que assessorava ou apoiava o movimento em questão. Eram freirinhas animadíssimas, que soltavam a voz com gosto. E era sempre uma voz fina e quase sempre desafinada. Eu não aguentava a voz das freirinhas de movimentos de moradia. Mas bebia ouvindo.

Outro boteco que frequentávamos, nessa época, ali pertinho, na ladeira da avenida São João, era um sujinho a que chamávamos “Dá licença”, porque era estreito e tudo era servido no balcão. Ficava cheio de gente enfileirada junto ao balcão comprido: o bar era estreito, mas comprido pra chuchu, parecia o mapa do Chile. O banheiro ela lá no fundo e, quando alguém ia lá precisava ir pedindo licença aos que estavam no caminho, que precisavam chegar a bunda pra frente para que o outro passasse atrás.

Relembrando os botecos simplórios dessa área do centro, me veio à memória um que nem me lembro se tinha nome, mas nós o chamávamos de Passarela, porque lá se vendia uma bebida, um coquetel, com esse nome. Conheci esse boteco quando fui trabalhar no escritório da Fábrica de Tecidos Tatuapé, na rua Boa Vista, em meados da década de 1960. Um dos meus colegas de trabalho era tarado por esse coquetel meio adocicado, feito não sei com que bebidas, mas acho que incluía vermute ou vinho branco doce, com algumas uvas passas no fundo. Era uma portinha no prédio Martinelli, na face virada para a avenida São João.

Aliás, vale uma lembrança desse prédio que já foi símbolo de São Paulo, maior arranha-céu da América Latina, ficou decadente e depois foi recuperado e transformado em sede de repartições públicas. Na época da decadência, abrigava moradias precárias, escritórios de advogados que cobravam barato, outros tipos de escritório, sempre com ar decadente, relojoeiros, barbearias, alfaiatarias e não sei o que mais. Só me lembro que os corredores inspiravam insegurança, eram cheio de “gatos” para ligação de energia, pois vários dos apartamentos ou escritórios testavam com a luz cortada por falta de pagamento.

O Martinelli é enorme e tem três entradas: uma pela rua São Bento, outra, um andar abaixo (o prédio fica num declive bem acentuado) pela avenida São João e outra, mais um andar abaixo, pela rua Líbero Badaró. Todas as vezes que fui lá, nessa época, geralmente acompanhando algum amigo — um deles era freguês de uma alfaiate barateiro que ocupava um comodozinho pequeno num andar lá do alto —, uma piadinha se repetia: na hora de descer, os passageiros iam falando ao ascensorista o andar em que queriam parar, mas quando se tratava de sair do prédio falavam o nome da rua: “Me deixe na São João”… “São Bento”… “Líbero Badaró”, e algum engraçadinho dizia: “Eu fico no Parque Dom Pedro”.

Mas voltando ao bar da passarela, em 1966, quando saía do trabalho eu ia pegar o ônibus para Pinheiros no Anhangabaú e sempre dava uma paradinha lá, com colegas de trabalho que iam para outras bandas, mas me acompanhavam porque gostavam da bebida.

No final da tarde não tinha mais na rua São Bento, nosso caminho, umas cenas que me divertiam muito quando chegava para trabalhar, de manhã. Uma figura era um cego que vendia barbatanas para camisa (coisa inacreditável hoje — acredito que quase ninguém mais sabe que os colarinhos das camisas sociais tinham um buraquinho para enfiar as barbatanas, para eles ficarem retos, duros). Ficava quieto e, quando ouvia a aproximação de toc-tocs de sapatos femininos esperava que os passos chegassem frente a ele e gritava com voz bem alta e estridente, parecendo uma araponga: “Barbatana”, provocando um baita susto na mulher. Cheguei a ver mulheres caindo de susto. O cego era sádico.

Outro personagem que eu gostava era um vendedor de bilhetes de loteria. Este, às vezes, continuava até o final da tarde vendendo seus bilhetes na rua São Bento e eu parava um pouquinho para ficar olhando, porque era divertido. Ele gritava os nomes dos bichos não conforme os bilhetes que tinha nas mãos, mas “homenageando” as pessoas que passavam. Quando vinha alguma mulher de meia idade toda emperiquitada, cheia de jóias ou balangandãs, o grito era “olha a vaca, olha a vaca”; quando era algum engravatado gordo e suarento, o grito era “olha o porco, olho o porco”, e assim se sucedia, com gritos de “olha o veado… Olha o pavão… Olha a galinha…”.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras. 

1 comentário em De bar em bar IX: Martinelli e outras lembranças

  1. rachei, tenho um amigo que parece o mapa do Chile, só que a cabeça dele é a Bolívia.
    quando recebo meu dinheiro do trampo na prefeitura, sempre sexta ou segunda, estralo num buteco que é pertinho de lá e tomo a mais barata e mais leve, varia de uma a três cervas. indo embora, saiu com o olhar pequeno já, e fala mansa- nao a banda -é bão. a treta é que o toda vez o dono do buteco diz que com aquela cerveja nao tem como ficar baquiado.

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