De bar em bar VIII: Riviera

Por Mouzar Benedito.

Com o fechamento do Cine Belas Artes, fiquei me lembrando de uma história que já contei por aí, acontecida no Riviera, bar em frente, na esquina das avenidas Consolação e Paulista, de passado tão glorioso quanto o próprio cinema. Mas como o Belas Artes, perdeu seu espaço para estabelecimentos mais bestas desses tempos de cinemas em shoppings e bares chatos e caros.

Passando pela esquina da Consolação com a Paulista, há alguns anos, vi que o Riviera tinha sido reaberto. Não entrei, tive um pouco de receio de me decepcionar, pois na minha memória ele era um dos lugares mais agradáveis de São Paulo, ex-ponto de encontro de comunistas, de anarquistas, de malucos, de artistas, de estudantes, de jornalistas e muitas outras categorias de pessoas, com garçons que entravam na conversa da gente e às vezes nos acompanhavam na bebericação. Pouco tempo depois saiu a notícia de que ele fechou de vez.

Foi mesmo um bar de sair em jornal. Era muito lembrado como lugar “frequentado” pela Rê Bordosa, famosa personagem de quadrinhos de Angeli. O garçom com quem ela contracenava, Juvenal, era também do Riviera. Mas tudo quanto era chargista, quadrinista ou ilustrador de São Paulo das décadas de 1960 e 70, e até parte dos anos 80 passou por lá.

Entre minhas muitas lembranças do Riviera há uma vez em que fui pra lá de táxi, com a perna engessada. A fratura e o gesso tinham mais de um mês e, sem namorada, descobri que nenhuma mulher topava sair com um cara andando com muletas. Pelo menos comigo. Cheguei até a paquerar no hospital, quando trocava o gesso, uma moça que também estava com uma perna engessada e andando com muletas, mas nem ela topou. Tive que me conformar. Então, nessa noite, fui ao Riviera com intenção de apenas tomar um chope, encontrar algum conhecido e bater um papo.

Mal terminei o primeiro copo, tinha acabado a sessão das oito no Cine Belas Artes, e entrou um bando de gente no bar. Não havia mesas vazias para todo mundo. Uma moça deu uma olhada geral, talvez tentando encontrar algum conhecido já ocupando uma mesa e bateu os olhos em mim. Não me conhecia, mas queria sentar-se um pouco, beber alguma coisa, e eu estava sozinho numa mesa. Pediu licença e tomou assento de frente pra mim.

Conversamos um pouco, discutimos o filme, conversa vai, conversa vem, ela me disse meio insinuante que tinha que ir embora e perguntou se eu não queria “tomar a última” e conversar mais um pouco na sua casa. Topei eufórico.

Paguei a conta, peguei as muletas que estavam encostadas na coluna e só aí ela reparou que eu estava de perna quebrada e dependia daqueles objetos para andar. Revirou nos pés! Desconversou. Pensando bem, estava com sono e coisa e tal, era melhor deixar o resto do papo pra outro dia. Mostrei que o gesso só ia até a altura do joelho, que não atrapalhava, mas não teve jeito. Foi embora, me deixando assanhado.

Sentei de novo e continuei bebendo. Nem tinha passado direito a excitação provocada pela moça, terminou a sessão das dez no cinema, entrou outro bando de gente, outra moça veio sentar-se à minha mesa. Tudo igual. Só que aí eu me preveni:

— Pode sentar, mas quero te mostrar logo: está vendo esses calos na minha mão? — mostrei os calos feitos pela muleta (não é só o sovaco que sofre com a muleta, não). 

— Sim, o que é? — perguntou já sentada.

— É de tanto tocar punheta. Todo dia eu toco. Tá vendo essas muletas? São minhas. Tô com a perna quebrada e ninguém trepa comigo. Então, se você quiser conversar normal, tudo bem. Se for pra fazer provocação, me deixar de pau duro e se mandar porque muleta é baixo astral, aí é melhor a gente nem conversar.

Ficou atrapalhada com a minha veemência. Disse que só queria tomar um chope, tomou e se mandou.

Continuei bebendo, sozinho, até as 3h da manhã. Aí, saí pra pegar um táxi, mas, bêbado, em vez de esperar um carro na porta do bar, fui caminhando até o ponto de ônibus, a uns duzentos metros. E caminhar duzentos metros bêbado e de muletas não é muito fácil. Ficar parado não tem problema: com um pé e duas muletas no chão, forma-se um tripé bem estável. O duro é dar um passo. Fui até o ponto de ônibus (para pegar táxi, lembro mais uma vez — ah, cabeça de bêbado) na maior dificuldade.

Faltando uns dez metros para chegar ao ponto, duas moças de minissaia esperavam ônibus e me olhavam. Parei, olhei para elas também, resolvi fazer uma brincadeira (boba, reconheço) e gritei bem alto:

— Arrá! Vou comer vocês duas!

Disparei numa corrida de muletas rumo a elas, com intenção de parar pertinho, mas elas se desesperaram e debandaram Consolação abaixo, gritando.

Comecei a gargalhar, enquanto dava mais um passo, perdi o equilíbrio e me vi caindo, inapelavelmente, de cara no chão. Além da perna engessada, andei uns bons dias com o nariz e a testa esfolados.

 ***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras.

2 comentários em De bar em bar VIII: Riviera

  1. rachei

    Curtir

  2. Frederico César // 09/11/2011 às 1:38 am // Responder

    rachei tbm, lembrei de um amigo meu.

    Curtir

Deixe um comentário