Belô

"Parque Municipal de Belo Horizonte", de Guignard

Por Izaías Almada.

Há quem diga que o mineiro de verdade é aquele nascido no interior das Gerais. Bobagem. Todo mineiro nascido na capital é tão ou mais mineiro porque consegue reunir os vários matizes de mineiridade que desabrocham desde o interior. E depois, o que é que tem a ver uma coisa com outra? Interior ou capital são todos mineiros.

Eu, por exemplo, que sou da capital, adoro brevidade, doce de leite mole com queijo, rapadura, galinha com quiabo e angu, doce de mamão ralado, jaboticaba Sabará, goiaba vermelha, abil, torresmo e tutu de feijão. É que sou também do Triângulo, da Zona da Mata, sou de Montes Claros, Governador e Varginha, sou da pequenina Itamarati de Minas, sou de Juiz de Fora, Uberlândia, Carangola e Belô.

Meu amigo Pereira, não. Meu amigo Pereira é só de Belô. Em criança, andou de bonde pela Rua da Bahia e colecionou figurinhas Seleções compradas de cambistas junto aos abrigos de bonde da Praça Sete. Os pais do Pereira viviam mudando de casa. De bairro. Mal o menino se acostuma à nova vizinhança e lá vinha o caminhão da mudança encostar-se à frente de sua casa: migrante na própria cidade.

Tal nomadismo involuntário quase fez de Pereira um homem sem raízes. Quase. Porque sua mineirice tornou-se, por vezes, e por isso mesmo, exagerada. Ou melhor, sua belorizontinice. Com o passar dos anos, todos os seus amigos foram deixando a cidade pelos mais variados motivos. Pereira, não. Pereira foi ficando. Gostava mais de Belo Horizonte do que da própria mulher com quem veio a se casar.

– Daqui não arredo pé, costumava dizer.

Viu, com grande aperto no coração, cortarem todas as árvores da Avenida Afonso Pena. Viu nascer o Mineirão e o seu Ameriquinha perder o lugar para o Cruzeiro na grande rivalidade com o Atlético. Estudou no Colégio Anchieta e depois no Estadual, antes ainda do prédio projetado por Niemeyer.

O pai do Pereira era jornalista do Estado de Minas, vindo de Juiz de Fora. Jornalista sem maiores ambições, pois o fato de vir para Belô já era bastante para a sua vaidade profissional.

Quando inauguraram Brasília, seus orgulhosos construtores chamaram-na de Novacap. Com inveja, por perderem o privilégio de ser a capital do país, os cariocas se autodenominaram Belacap, pelos encantos óbvios da cidade. Os emigrantes mineiros, abundantes nas duas cidades, ironizaram o fato chamando Belo Horizonte de Merdacap. Pereira nunca entendeu assim e revoltava-se com o maledicente epíteto. Admitia apenas o carinhoso Belô.

De tudo isso me lembro observando os velhos camaradas à minha volta, quase todos já de cabelos grisalhos. Dois deles viúvos e um solteirão e que, segundo as más línguas, não assumiu a sua homossexualidade. Só mesmo o Pereira para nos reunir a todos.

Pena que não pudesse mais nos dirigir a palavra. A viúva e os filhos desdobravam-se em cuidados com os visitantes, divididos entre a dor de perderem o Pereira e a surpresa por receberam tantas pessoas no velório. Ali estava ele no caixão, arrumadinho dentro do seu único terno, empertigado e com a mesma expressão arrogante de sempre. Alguém se lembrou de cobri-lo com uma bandeira do América Futebol Clube.

O velório transformou-se em agradável exercício de memória. Lá estavam ex-colegas do curso primário, do ginásio e do trabalho. Ex-namoradas, irmãs e primas cobiçadas na adolescência, agora ao lado de suas filhas a lembrarem-lhe os traços da juventude. A família do Pereira não imaginava o quanto ele era querido.

A alegria foi tanta que foi constrangedor quando todos se deram conta de que estavam num velório. Alguns de nós não nos víamos há trinta anos. Caminhos diversos, profissões as mais variadas, tinhamos apenas em comum o fato de termos nascido e passado nossa juventude em Belô.

E Belô era o Pereira. Demo-nos as mãos e fizemos um círculo à volta do caixão. Pereira parecia sorrir. Um sorriso de satisfação por perceber que nós também amávamos a sua cidade, a nossa cidade, a cidade de onde, com muito orgulho, ele “nunca arredou o pé”.

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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