A casa de Garibaldi

Por Flávio Aguiar.
Na semana que passou fomos – eu e a Zinka – passar uma semana na Sardenha. O principal motivo era aproveitar alguns últimos dias de sol e também praia antes que o outono entrasse para valer, com suas cores lindas nas árvores, mas também com seus dias cinzentos, noites crescentes e o frio montante. Devo dizer que esse motivo foi plenamente atingido, acrescido de algumas surpresas muito agradáveis.

A primeira surpresa foi o vinho. Já prováramos do vinho sardo. Conhecíamos sua cepa mais famosa, a do vinho Cannonau, tinto. Mas o que chamou a atenção foi a verdadeira miríade de cepas de que a Sardenha desfruta, com uma miríade de nomes, tintos, rosados e brancos. A explicação é relativamente simples: a Sardenha é o lugar com maior quantidade de micro-climas naturais que já visitamos. Não é só a alternância montanha/mar. Anda-se por um pouco de estrada, faz-se uma curva no caminho e pronto: chega-se a uma região inteiramente diferente da que passou, variando entre fertilidade e aridez, chuva e sol, frio e calor etc. E cada micro-clima destes é o cenário para uma uva diferente.

Com esta surpresa veio outra paralela: a Sardenha foi o lugar de maior regularidade nos vinhos que já visitamos. Todos, de qualquer preço, de qualquer tipo, a qualquer hora, em qualquer lugar, em copo, taça ou caneca, são sempre de muito bons para excelentes. Todos? Todos. Não há erro na Sardenha. Nem na França que tem lá seus grandes (e às vezes carésimos) vinhos, dá para perceber tamanha regularidade.

Outra surpresa foi a paisagem. Eu, que lá nunca estivera antes, esperava paisagens magníficas. Mas é mais que magnífico. É deslumbrante. Não dá para descrever: só vendo. Montanha, penhasco, mar, pedra, água transparente, Cagliari (a cidade mais importante e maior) com seu centro histórico, Bosa com seu castelo fortificado e com o rio (o único navegável na Sardenha) a cortando pelo meio, tudo fantástico.

Bueno, mas isso aqui não é uma seção de vinhos e de paisagismo. Acho melhor entrar no assunto, senão a dona da editora e do blog é capaz de achar que estou adquirindo hábitos demasiadamente burgueses.

E o assunto é outra surpresa. Ao lado da Sardenha, mais precisamente entre ela e a Córsega (francesa, que se vê ao longe), está a Ilha Madalena, assim denominada em honra a Santa Madalena, a ex-prostituta que em algumas versões lavou os pés de Cristo e enxugou-os com os seus cabelos. Aliás, eu sempre disse a meus alunos que, se quisessem encontrar grandes cenas de verdadeiro erotismo, lessem a Bíblia ao invés dessas porcarias pornôs que infestam as bancas. Mas isso é outro assunto.

Voltemos ao principal. Ao lado da Ilha Madalena fica a ilha Caprera. Caprera tornou-se um verdadeiro santuário. Um não, dois. Há um santuário natural, com praias magníficas, sem outra infra-estrutura a não ser aquela que Deus ou o Big Bang lhe deu. E há um santuário nacional, que é a casa de Giuseppe Garibaldi, aquela em que ele viveu o fim da vida e lá morreu.

Para mim, visitar a casa de Garibaldi era uma verdadeira peregrinação. Lá fui munido de um exemplar do meu romance Anita, que doei à biblioteca da casa, hoje um museu. Esperávamos, eu e Zinka, encontrar um autêntico lieu de mémoire, na definição de Pierre Nora, ou seja, um “espaço” de uma identidade cultural, nacional ou regional, um constructo identitário coletivo. Algo assim como a Torre Eiffel, ou o Panthéon para os franceses, os monumentos em Washington, o Maracanã no Brasil etc., lembrando que esse lieu de mémoire pode ser tudo: um livro, por exemplo, como Os sertões para todos os brasileiros ou O tempo e o vento para os gaúchos.

De um modo geral os lieux de mémoire têm algo kitsch, sobretudo os arquitetônicos, senão na sua concepção, pelo menos na sua degustação, quero dizer, recepção, desfrute, peregrinação. Era o que eu esperava em Caprera.

Mas nada disso se revelou (pelo menos para um fã de Garibaldi que nem eu, que nem nós). Claro: há o museu, objetos, quadros, fotos, tudo envolto numa “aura nacional”, intensificada pelo fato de que a Itália (país jovem se comparado ao Brasil, que é 39 anos mais velho do que ela) está comemorando o sesquicentenário de sua unificação.

Mas o fantástico é que ao se entrar na casa, na área em volta, está-se entrando quase literalmente dentro da mente e do coração de um homem, e de um homem que, com suas qualidades e contradições, viveu uma vida fantástica, e desfrutou de uma morte também fantástica.

Na casa, em que pese a marca da última esposa de Garibaldi (que vetou o transporte do corpo e do esquife de Anita para o cemitério ao lado, onde está a tumba do herói e de alguns de seus familiares), a presença mais forte e sutil, além da dele, é a da heroína brasileira. Além de um quadro representando sua fuga com o filho Menotti, de quinze dias, quando prisioneira dos Imperiais na Guerra dos Farrapos, e de um outro retrato (pintado) seu, estão madeixas dos seus cabelos, emoldurados numa caixa redonda envidraçada na parede. Garibaldi levou aquelas madeixas com ele pelo mundo, em seus exílios e aventuras, e as contrabandeou para Caprera, por baixo ou por cima do ciúme póstumo da última mulher…

Garibaldi comprou metade da ilha e lá construiu não só a casa, também uma fazenda, em que plantava e criava algum gado. Levou seus ponchos que trouxera da América do Sul e que usava nos invernos ou então um – especial, branco – quando tinha audiências com o rei. Lá ele desfrutou de seu último exílio – este em sua própria terra – depois que foi afastado da política italiana pelas manobras de Cavour, o primeiro ministro ardiloso e conservador.

O que impressiona em Caprera é a percepção de que estamos diante de um lieu de mémoire cujo objeto principal, Garibaldi, foi também seu primeiro sujeito, isto é, construtor. Garibaldi tinha uma noção perfeita de projeção de imagem e de seu valor, para não usarmos o vulgar termo marketing. Depois de retornar à Itália pela segunda vez para lutar por sua unificação, ele entregou o manuscrito de suas memórias a nada mais nada menos que Alexandre Dumas, Pai, certamente um dos escritores de maior sucesso editorial em seu tempo. O genial autor de Os três mosqueteiros (sobre a gestação desse livro e de outros, não percam, leitoras e leitores, o filme O outro Dumas [L’autre Dumas], com Gerard Depardieu) publicou essas Memórias de Garibaldi com a chancela de seu nome, o que garantiu ao livro um sucesso internacional imediato e retumbante, inclusive no Brasil. Já antes ele escrevera La nouvelle Troie (A nova Tróia) sobre a resistência em Montevidéu, de que Garibaldi fora figura de proa, contra Rosas, da Argentina, ou melhor, naquela época, de Buenos Aires. 

Garibaldi estava consciente da projeção de sua imagem para o futuro, e da importância que isso teria para a sua Itália. Assim como diz o lugar comum que ir a Roma sem ver o Papa é uma frustração (para quem for papista, pelo menos), ir à Itália sem ir a Caprera é perder de vista uma pedra fundamental daquela construção que, no fim das contas, como todos os países, a Itália também é.

Na casa (infelizmente dentro não se pode fotografar nem filmar) o que mais impressiona é o quarto onde Garibaldi morreu, onde está conservado tal e qual seu leito de morte. A cama está voltada para a janela principal da peça, e dali se vê, como Garibaldi viu em sua última mirada/morada, o mar e a linha fina da Córsega. Por que morrer olhando a Córsega? Porque adiante dela, para o norte, está Nice, onde Garibaldi nasceu. Morrer olhando para o lugar de origem é uma atitude decididamente romântica (para mim isso é elogio). Aparentemente se olha para o passado; mas também se olha a própria trajetória, e assim se faz dela um destino, um memorável. Naquela Nice estava enterrada a mãe de Garibaldi. E, é bom lembrar, naquele momento estava enterrada também, ao lado da mãe, a sua Anita, que, decididamente, foi, além da Itália, o grande amor da vida de Garibaldi.

Mais um contrabando para Caprera do genial herói.

Saúde, portanto, com um Cannonau. 

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O romance Anita (Boitempo, 1999), de Flávio Aguiar, narra a trajetória de vida das personagens históricas Anita e Giuseppe Garibaldi, suas lutas republicanas no sul do Brasil, pela independência do Uruguai e reunificação italiana. O livro recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2000 e será lançado em versão eletrônica (ebook) ainda este mês.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em A casa de Garibaldi

  1. Rogério Aguiar // 21/10/2011 às 1:16 am // Responder

    Emocionante.
    Ler sobre estes feitos e gestos românticos e com certo arrebatamento provoca a reflexão. Neste caso, a reflexão sobre a paixão. Viver apaixonadamente por alguém, pelas idéias, pelos bons sabores, sem ser fanático, é essencial.
    Um fraternal abraço, dos pagos,
    Rogério

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  2. Flavio Wolf de Aguiar // 08/11/2011 às 9:50 am // Responder

    Também acho. O fanatismo é o contrário da paixão. Esta tem seu lado aloprado. Aquele não tem outro lado. Gracias, Flávio.

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