O sapo Gonzalo em: Brutti, Sporchi e Cattivi

Por Luiz Bernardo Pericás.

O sapo Gonzalo já começava a se arrepender de ter ido àquela festa… 

Eu havia sido convidado pelo desembargador Peixoto para um cocktail em homenagem a uma fuinha conhecida, a professora Lívia Weiss, que acabara de se tornar professora emetretriz da Universidade de São Priápico. Perguntei ao anfitrião se podia levar um amigo, e ele concordou. Agora estávamos naquela mansão no bairro do Surumby (um dos mais chiques da cidade), com a nata da pseudo-intelectualidade local e a crème de la crème do meio político e artístico da República do Repolho. 

Ao entrarmos no enorme salão daquele château caipira (um tributo ao mau gosto arquitetônico da era moderna), pudemos perceber, imediatamente, um caríssimo quadro, original, de Van Gogh na parede. O dono da casa, gargalhando, dizia que havia arrematado a obra-prima num leilão por uma bagatela de poucos milhões de dólares. O ruído das pedras de gelo em seu copo de cristal ressoava junto com seu vozeirão de foca circense. 

O batráquio argentino, já de mau humor, ficando mais verde do que de costume, sabia que se o senhor Peixoto tivesse conhecido Vincent pessoalmente, nunca deixaria o artista holandês entrarem sua casa. Provavelmente teria nojo até mesmo de apertar sua mão. Mas lá estava a pintura milionária na parede em tom salmão…

O contraste em pessoa estava ali mesmo, a alguns passos do retrato oitocentista. Era o picareta artístico mais celebrado da República do Repolho, o “multitalentoso” Mic Vuniz, que tentava (usando seu suposto “charme pessoal”) garantir um belo financiamento para sua nova obra, algo “inédito” e “sensacional”: pretendia fazer um desenho com mostarda e quetchup, que seriam espirrados aleatoriamente em cima de uma tela em branco. Em seguida, o pernóstico Vuniz iria fotografá-la com sua pequena câmera digital. E a foto, depois de ampliada o suficiente para cobrir um muro inteiro, seria então exibida na Bienal de Veneza! Um gênio, por certo!

O tal “artista” flertava com uma bela socialite, filha de um dos maiores banqueiros do país, na tentativa de, quiçá, conseguir uns tostões para sua empreitada. Estava no caminho certo… Pior do que ele, só o pintor Rameiro Brota, o rei do kitsch, o favorito dos consultórios médicos e escritórios de advocacia de Miami e outras metrópoles tropicais…

A corja presente na função dava goles generosos nos copos cheios até a boca de um blue label importado especialmente para aquela ocasião. Os garçons não paravam um minuto. Tudo isso para homenagear a grande zoóloga. Afinal de contas, Lívia Weiss era uma fuinha admirada por muitos. Mascando continuamente um chiclete sabor tutti frutti, pressionava com cuidado a taça de champagne em suas mãos, exibindo estranhas e mal cuidadas unhas azuis, uma excentricidade, provavelmente. Tinha dois carrapatos gorduchos grudados em sua cabeça, estudantes fiéis, seus orientandos de pós-graduação, que não se desgarravam dela por um minuto sequer. Engordavam, engordavam, chupando seu sangue…

Os docentes e editores ali presentes não cansavam de lamber seus sapatos. Um deles, admirador do Dalai Lama, defendia a volta da teocracia feudal ao Tibet, para instaurar o que chamava de “reino da liberdade”. Outro, vegetariano e ecologista, insistia que só comprava produtos naturais, sacolas feitas de cipó e sucos de frutas amazônicas. Era antitabagista ferrenho, ainda puxasse um fumo “alternativo” de vez em quando. Havia quem comentasse sobre ioga e budismo, descrevendo as novas técnicas de respiração e meditação tântrica que aprendera com seu personal guru, um sósia do Maharish. Ali perto, um acólito, sem papas na língua, incensava todas as porcarias do cinema nacional desde a “retomada”, dando a entender que os filmes, atores e diretores de quinta categoria da República do Repolho eram “geniais”… Já outro convidado elogiava Brad Pitt e Angelina Jolie por adotarem tantas crianças esquálidas da África e Ásia. E finalmente um professor titular, cataglótico notório e colega da fuinha, exaltava desmedidamente o Bono Vox, por seu trabalho “árduo” para salvar da miséria e opressão os povos do Terceiro Mundo, eternamente nas mãos de políticos corruptos e dos interesses dos imperialistas.  Ah, que horror! Ali fazia falta alguém como John Lydon! Se ele estivesse lá, daria um chute no traseiro de toda essa gente…   

Ao fundo, saindo de uma caixa de som, a voz da estrábica Maria Irrita, filha e imitadora de uma grande intérprete da MPB. Os convidados, animados, de vez em quando levantavam os dedinhos indicadores, em direção ao teto, como se furassem, de forma imaginária, o ar asséptico da mansão. Esse era o jeito que a elite branca e obesa daquela metrópole dançava o samba. Coisa de gente com estilo…

Alguém chegou a pedir que colocassem na vitrola algo do Chico, quem sabe do Caetano, e até mesmo, do João Gilberto. Tinham “bom” gosto. Mal ouviam, porém, a canção que tocava no momento. As bocarras gigantescas, com dentes cavalares cobertos por jaquetas de porcelana, soltavam pérolas sobre seriados de TV, a Fashion Week e os melhores hotéis da Côte d’azur ou de alguma ilha do Caribe. Estavam adorando o escroquetel. 

Gonzalo se irritava (como sempre) com aquela fauna, e com a impossibilidade de fumar ali. Nem na casa do desembargador podia acender um cigarro! O jeito era beber. Nunca havia tomado um blue label na vida, e apesar de detestar naturalmente todos os convidados, e de querer fugir da festa o quanto antes, achou por bem enxugar algumas doses do uísque escocês de vinte e um anos antes de finalmente partir. Tinha de aproveitar alguma coisa no evento, afinal de contas! Já começava a se embriagar. 

Havia várias rodinhas de conversas. Numa delas, o ministro da Educação, o senhor Ferdinando Rashid, comendo um canapé de alfafa, revelava para os colegas seus futuros planos políticos:

“Estou pensano seramente em sê candidato a prefeto. Chegando lá, vô acabá com toda essa gênti com preconceito linguistico. Eu e a senadora Márcia estamo de acordo. Nós três vai propor minha candidatura”. 

A platinada senadora Márcia, rainha das colunas sociais e “revolucionária” desde criancinha, interrompeu, mal conseguindo mover os lábios pela quantidade excessiva de botox, que quase petrificava seu rosto:

“O ministro quis dizer nós dois, não é? Você e eu somos duas pessoas. Não é isso?”

O quadrúpede, terminando de mastigar o canapé de alfafa, retrucou:

“Que nada! Você e eu juntos somos três! Márcia, minha quirida, você num sabe contá! Vou te passar um livro publicado pelo ministéro para você aprendê!” 

A colunável ria aos borbotões do comentário do colega ruminante, fazendo tremer todas as dobras de sua barriga. Quase que a pele de sua cara, esticadíssima pelas numerosas plásticas, se rasgou ali mesmo. 

Naquele grupo também estava Brutus, um ceratophrys ornata típico, puxa-saco profissional e assessor do ministro nas horas vagas, que concordava com a cabeça, coaxando. Já havia tomado cinco doses do blue label, e queria mais. Desde o governo do ex-presidente Borbulha que seu sindicato havia sido privilegiado. O antigo chefe de Estado era como um pai para ele. Ao longo dos anos, fora lotado em diferentes ministérios, e agora, mesmo sem nenhum preparo técnico ou intelectual, “assessorava” Rashid e entupia a pança com patês, caviar e a indispensável cervejinha nos finais de semana. Estava aprendendo a se “refinar”. Por isso, nunca deixava de comprar todo mês um legítimo Scotch dezoito anos, que não podia faltar na sua lista semanal de supermercado. 

Também batiam um papo descontraído o pagodeiro Tiozinho (outro que pretendia ser candidato a prefeito) e o ministro Tapioca, do Ministério das Bolinhas de Gude, ambos “comunistas” até o osso, grandes estudiosos da vida e obra de Gramsci e Lukács e profundos conhecedores dos discursos de Enver Hoxha, líder “iluminado” que haviam estudado durante anos e anos na escola de quadros de seu partido. Eram famosos também por embolsar muito dinheiro público e privado…

Do outro lado da sala, o deputado Talita (autor de 560 livrinhos açucarados, sem qualquer profundidade ou sofisticação) soltava um lero despretensioso com seu namorado, o padreco pop Flávio de Melo. Talita era outro que também queria ser prefeito! Mesmo que de partidos diferentes, todos ali conviviam bem…   

Ainda havia um bagre, um tal Claudemir Safári (um nome propício, considerando que aquilo parecia um zoológico), que se dizia “filósofo”. O jovem e careca doutor Safári, com seu jeito delicado e polido, era professor universitário e colunista da Rolha de S. Priápico, um jornal de grande circulação. Era constantemente convidado para fazer comentários nos noticiários da TV Costura, um canal público de televisão.  Nas legendas de seu nome, aparecia sempre o rótulo “filósofo”. E, como tal, discorria sobre temas tão variados quanto a gripe no Rio Grande do Sul e a guerra na Líbia. Assuntos propícios para alguém com seus conhecimentos. Não dava para saber ao certo se o bagre era um Tachysurus, Genidens ou Felichthys. Quem sabe era um bagre-cachola, Netuma barba, ou um bagre-cabeçudo, Pimelodus ornatus, ou outro tipo qualquer. Também não dava para saber exatamente que linha filosófica seguia. Mas Gonzalo desconfiava que o tal garoto, o professor Safári, na verdade, tinha mais propensão a ser, de fato, um bagrídeo “falófilo”. De qualquer forma, o dedão do pé direito de Aristóteles “filosofava” melhor do que ele. 

Isso para não falar de outros dois comentaristas televisivos que estavam por lá, Carlos Blindi e Diego Manada, ambos do New Jersey Connection, um programeco da TV a cabo. Blindi, sexista e racista notório (que não tinha nível intelectual sequer para debater com um chimpanzé), criticava com veemência os governos árabes para seu colega bovino Manada, que acabara de ganhar o prêmio de “Cretino do Ano” da revista Olhe, na qual publicava artigos insípidos e insignificantes todas as semanas. 

E então, last but not least, já bastante bêbado, um Jabuti gorducho e asqueroso, representante oficial do establishment literário da República do Repolho. Não tinha nome, mas era conhecido por todos por seu apelido, CaBraL. Gordo, curvado, com um monóculo embaçado, barba branca e uma bengala de madeira na mão, tossia sem parar, enquanto conversava com seus colegas. Grande amigo de Lívia Weiss e sua turma, nunca deixava de frequentar as festinhas dos ricos e famosos da cidade. Já havia até sido entrevistado pelo Amaury Júnior, o que para ele era um orgulho! Aquele Jabuti esclerosado gostava de distribuir prêmios todos os anos para figuras menores, desde que fossem bem relacionadas consigo e com editores com quem tinha afinidade. O conhecimento que possuía do mundo literário, porém, era muitíssimo limitado. Afinal, o Jabuti usava os livros como assento (preferia sentar-se em livros do que em cadeiras) ou como apoio de objetos em estantes. Achava que estas eram as duas principais funções da “literatura”. Ah, Jabuti… Ele era mais um “sujo, feio e malvado” que combinava com toda a caterva presente. Como se pode imaginar, bebericava também seu blue label, combinando com os editores na festa quais seriam os autores agraciados na próxima edição de seu concurso.  Este ano, os finalistas eram nulidades como Laudelino Gomes, Danny Pizza, Tony Silver, entre outras aberrações. Até Gilberto Freyre estava na lista! Quem sabe se ganhasse, iria pessoalmente pegar o troféu! Era preciso muita paciência mesmo para aguentar todos aqueles animais…

No piso superior da mansão, isolado em seu quarto, trancafiado no cafofo escuro e poeirento, estava o filho do desembargador Peixoto. O jovem estudante universitário era militante da LUR (Liga Ultra-Revolucionária), uma minúscula organização de esquerda, inimiga figadal da LMR (Liga Muitíssimo Revolucionária) e do PSROCTU (Partido Super-Revolucionário dos Operários e Camponeses de Todo o Universo), um partido da mesma tendência. 

De cabelos rastafári, aparelho nos dentes e a acne cobrindo cada centímetro de sua face, o rapaz, aluno da Universidade de São Priápico e fã de Manu Chao, estava há várias horas diante da tela do computador, se comunicando em seu Facebook com “correligionários” para organizar a próxima manifestação numa importante avenida da cidade. Planejavam a Marcha das Baleias, a Marcha dos Golfinhos e a Marcha dos Atuns. Seriam convocadas centenas de pessoas para levantar uma bandeira fundamental: o direito de as baleias, golfinhos e atuns poderem cheirar rapé sem serem incomodados por ninguém. Já preparavam os cartazes e centenas de estandartes vermelhos, que iriam distribuir nas ruas para dar a impressão de que as massas estavam a seu lado. 

De vez em quando, o rapaz tirava os olhos da tela do computador e observava por alguns minutos, pensativo, seu velho Autoramas, seu novíssimo PlayStation e um charango que comprara numa excursão recente à Bolívia, com sua turma da faculdade, todos numa prateleira da estante entulhada de objetos que guardava com o maior carinho. Nessa hora, ele se convencia de que não era mais um garoto: já era um homenzinho!

Mas o filho de Peixoto também era ambicioso. Queria seguir carreira acadêmica, e para ter êxito na empreitada, mesmo estando ainda no começo da graduação, fazia de tudo para agradar seu professor favorito e assim, garantir um lugar no mestrado e doutorado. Chegara até a recusar publicar um artiguete (que havia escrito recentemente) numa revista editada por um docente da mesma instituição, que o convidara a colaborar com o periódico. É que a publicação daquele professor não estava avaliada na categoria “A Maior Revista de Nossa Galáxia” no Qualis da Capes, e por isso, o espinhento rapaz guardaria sua “obra-prima” para algum journal de maior qualidade. O pimpolho do desembargador ainda era um garoto, mas já se transformara num carreirista, politiqueiro, oportunista… Como muitos de seus colegas universitários… Novos tempos…  

Enquanto isso, Gonzalo bebia. E pensava seriamente em ir embora dali. No íntimo, queria acabar com todos naquela festa. Se pudesse, colocaria fogo em tudo, incineraria todos os móveis e objetos, arrasaria a casa inteira… Não sobraria nada de pé. Sentia ânsias no estômago só de ver e ouvir as conversas dos convidados. Mas sabia que não podia eliminar aquela fauna da face da Terra. Lá no fundo, ainda que fosse um sapo, Gonzalo era um humanista! A única solução imediata seria ignorar os animais presentes, fingir que não existiam, que eram apenas um pesadelo passageiro, um fruto de sua imaginação. Mas eles existiam, e inchavam, inchavam, inchavam, a cada mordida nos canapés, a cada gole no uísque importado, a cada vez que o contracheque era depositado em suas contas, no final do mês… 

 “Farsantes!”, pensava o batráquio, espumando, quase tendo uma convulsão. 

O fato é que o anfitrião e os convidados mal haviam notado a presença do sapo, e em nenhum momento haviam conversado com ele. Nem comigo. Gonzalo, por sua vez, queria partir o quanto antes. 

“Vamos embora, pibe.  Não aguento mais esse lugar”. 

Ele estava certo. Talvez o jeito fosse tomar umas e outras no Bar do Joaquim. 

Sequer nos despedimos. Já na rua, cambaleando, Gonzalo, desafinado, cantava em alto e bom som: “Esta noche me emborracho…” Alguém, incomodado, gritou de uma casa nos arredores, com a cabeça para fora da janela: ia chamar a polícia.  Contrariado, Gonzalo apenas grunhiu algo incompreensível e acenou para a silhueta distante do homem que reclamava. Deixamos todos aqueles animais para trás e fomos beber bem longe dali.  

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

4 comentários em O sapo Gonzalo em: Brutti, Sporchi e Cattivi

  1. Caro Luiz,
    Gosto do Gonzalo, mas talvez ele não goste de mim.
    Tudo bem, já que está claro que ele se definine pelo que odeia.
    Tenho pois mais influência nele do que ele sobre mim…
    Arrume uma patroa para o sapo!
    Abraços,
    Mauro

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  2. Sensacional!
    Este pessoal está sempre aqui em Brasília, se encontra em festas e no Congresso.
    Tudo farinha do mesmo saco!
    O sapo Gonzalo está certo: botou o dedo na ferida.

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  3. Arlete Cury // 22/10/2011 às 8:30 pm // Responder

    Hahaha!!! Muito divertido.
    Aguardo ansiosa a proxima historia.

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  4. Jorge Guilherme // 22/10/2011 às 8:46 pm // Responder

    Luiz,
    Diferente, ironico, criativo.
    Voce deveria ampliar a ideia, abordando a cena politica brasileira e paulistana.
    Adoro textos ironicos.

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