A fantasia do novo e a terrível formação permanente

Os escritórios da Google

Por Isleide Fontenelle.

Em reportagem veiculada pela Folha de S.Paulo (25/set/2011), somos informados sobre um centro de artes que funciona em Los Angeles (EUA), cujo diploma é garantia certa para “uma vida de salários astronômicos nas maiores empresas do ramo”. Dados da reportagem mostram que, se uma das grandes vantagens da escola é a maneira como seus talentos são garimpados por grandes empresas e estúdios cinematográficos; isso estaria de alguma forma atrelada ao fato do centro ter, entre seus professores, ex-alunos e profissionais de grandes corporações que permitem aos estudantes receberem “as mais recentes técnicas e tendências”.

Reportagens como essa vem se somar a muitas outras que a mídia repercute em torno da importância da criatividade e da inovação na sociedade contemporânea. Vivemos uma inflação discursiva em torno desses conceitos e inovar se tornou um novo imperativo social. Mas qual a novidade que esse discurso traz, dado que a inovação sempre foi considerada central para o processo produtivo capitalista? Penso que podemos compreender tal discurso a partir da noção de controle, ou seja, dos desafios do capitalismo atual em dominar uma forma de saber que, em princípio, não está disponível para ser incorporada como mercadoria.

O nascimento do management esteve associado a um processo de extração do saber humano, que foi reescrito sob uma forma racionalizada e, portanto, controlada, nos termos de uma Administração Científica que ficou mais comumente conhecida como Taylorismo. Ao longo de todo o século XX, o que tivemos, do ponto de vista das reestruturações produtivas, foram versões mais ou menos modificadas que partiram desse “programa” inicial. E que, por sua vez, se tornou a ilustração perfeita daquilo que o filósofo francês Michel Foucault definiu como “sociedades disciplinares”, marcadas por sistemas de confinamento e de vigilância permanente. Aqui, havia um monopólio do capitalismo sobre os meios de extração e reprodução do saber operário.

Mas foi um outro filósofo francês, Gilles Deleuze, que na esteira dos escritos de Foucault, afirmou, na década final do século XX, em seu livro Conversações (Editora 34, 1992) que “sociedades disciplinares é o que já não éramos mais”. A elas sucederam as “sociedades de controle” que, segundo o filósofo, são definidias por uma mudança tecnológica e marcam a passagem do confinamento da era da fábrica para o controle contínuo e a comunicação instantânea, que compõem a nova lógica da empresa. Entenda-se que, aqui, Deleuze pensa a fábrica em seu sentido original: “indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência” (p.221). A lógica da empresa, por outro lado, ilustra um novo modelo no qual há um desmembramento entre produção e gestão, sendo a produção relegada a fábricas terceirizadas com trabalho mal remunerado; enquanto o novo management trata de cuidar, apenas, dos processos de inovação nas formas do design e da comunicação publicitária.

É interessante a terminologia dada por Deleuze a essa nova etapa das sociedades capitalistas, visto que uma das características centrais desse novo modelo é, justamente, a crise no sistema de controle do trabalho tal qual conhecíamos desde o Taylorismo. Entendo que o filósofo quis marcar que, evidentemente, o controle não se extingue, mas que passa a operar sob novas bases. E esse é um ponto fundamental para explicar essa inflação discursiva em torno dos conceitos de criatividade e inovação nos nossos dias. 

Se atentarmos para o que André Gorz escreveu em O Imaterial (Annablume, 2005), fica evidente o papel que a inovação ganha nesse novo estágio do capitalismo. Centrando sua análise na revolução informacional e nos desafios que ela coloca para o capitalismo atual, Gorz lembra como, no seu início, tal revolução visava reduzir custos de produção. Tendo atingido esse objetivo, a fim de evitar a queda no preço das mercadorias, a próxima etapa foi incrementar qualidades imateriais a tais produtos a fim de que se pudesse extrair deles “rendimentos simbólicos de monopólio”, ou seja, um sobrepreço mediante o caráter de antecipação ou exclusividade no oferecimento de produtos e serviços que pudessem se destacar por seu design ou marca publicitária. A partir desse momento, a obsolescência programada passa a ter um papel central, e a inovação permanente começa a ganhar, então, a dimensão atual que tem. Ou seja, não se trata, apenas, de produzir novidades em um ritmo cada vez mais frenético mas, principalmente, “transformar a invenção em mercadoria, e pô-la no mercado como um produto de marca patenteada” (p.42).

Mas o saber não se presta a ser uma mercadoria qualquer e tendo o desenvolvimento produtivo gerado tal contradição no âmago do próprio capitalismo, esse buscou incorporar o saber sob a forma da inovação, operarando em uma fronteira extremamente instável, a partir da qual o processo de invenção possa ser avaliado e regulado. São muitas as consequências possíveis a serem analisadas a partir desse novo estágio da busca da incorporação do saber pelo capitalismo e Gorz adverte que seu ponto de chegada aponta para um capitalismo de barbárie ou para a sua superação.

Mas gostaria de finalizar apontando de que maneira isso já tem gerado consequências nas instituições que, nas sociedades disciplinares, foram consideradas as depositárias do saber (escola, universidade). É justamente esse desafio que se apresenta na reportagem mencionada no início deste texto pois, se por um lado as organizações já não conseguem suportar o processo acelerado e intermitente de gerar, nos seus limites internos, a próxima grande ideia que possa ser incorporada como mercadoria; por outro, o universo acadêmico é cada vez mais demandado a dar conta dessa fúria capitalista pela inovação, produzindo apenas um saber que possa se tornar mercadoria. Voltando ao conceito de “sociedade de controle”, quando procurou dimensionar os seus impactos, Deleuze advertiu que nesse novo modelo social a educação seria “cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – outro meio fechado”. Segundo o filósofo, ambos desapareceriam “em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário” (p.216).  É justamente disso que se trata, pois na lógica da empresa – e da inovação permanente – nunca se termina nada: os atuais discursos de gestão, focam no “novo trabalhador” como capital de si mesmo e na sua permanente necessidade de formação; enquanto, no contexto acadêmico, impõe-se um sistema de avaliação e de empresarização dos saberes que resulta em uma lógica similar aos novos modelos de gestão do capital. Do mesmo modo que o “homem do controle” funciona em um feixe contínuo, atualizando-se permanentemente a fim de manter-se valorizado no mercado, o universo acadêmico tem sido, cada vez mais, pressionado a “atualizar-se” de acordo com os novos critérios da transformação do saber em mercadoria. Não por acaso, um dia depois da reportagem mencionada no início deste texto, a Folha de S.Paulo (26/set/2011), nos informa sobre uma Fundação que distribui bolsas para que os alunos deixem de frequentar a universidade e fiquem dois anos desenvolvendo seus projetos “pessoais” de pesquisa em um lugar da Califórnia (EUA). Os idealizadores do projeto defendem que a criatividade pode emergir mais facilmente fora dos muros e das regras da academia e juram que não estão em busca de ganhar dinheiro com a inovação que resultará dessas mentes inventoras. Filantropo, o mentor do projeto visa questionar o modo como se ensina, pois ele está preocupado com a queda da inovação tecnológica que vem ocorrendo nas universidades do mundo inteiro…

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Isleide Fontenelle é  formada em Psicologia, com Doutorado em Sociologia pela USP. Professora adjunta da Fundação Getúlio Vargas-SP, em cursos de graduação e pós-graduação, integrante do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração. É autor de O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (Boitempo Editorial, 2002) e diversos artigos e ensaios. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

1 comentário em A fantasia do novo e a terrível formação permanente

  1. Silvio Matheus // 26/10/2011 às 10:12 pm // Responder

    Excelente e instigante este texto. Nos delega inúmeras reflexões.
    Abração,
    Silvio Matheus.

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  1. Cirandeiras

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