De bar em bar VII: Bar da Tia Rosa

Por Mouzar Benedito.

Ilustração: pintura de Jan Miense Molenaer.

Acho que se existisse uma associação de donos de botecos da entrada da Cidade Universitária de São Paulo, mais especificamente da avenida Waldemar Ferreira, minha turma devia ser condecorada por ela, com direito a consumo gratuito em muitos estabelecimentos. Acredito que fomos os maiores criadores de clientela para os bares da região, com exceção do Café Paris, que achávamos muito sofisticado, chato e caro, pra não dizer metido a besta.

Antes da nossa turma começar a frequentar a área, os botecos da região viviam às moscas. Aí atraímos gente pro Rei das Batidas, depois pro Tropeirinho (hoje extinto)… E logo já não cabíamos mais no Tropeirinho e procuramos mais uma alternativa. A que nos pareceu melhor foi o Bar do João, a uns cinquenta metros do Tropeirinho, frequentado só por mecânicos e carroceiros. Não tinha mesas nem cadeiras, mas a gente podia tomar assento numa caixa de cervejas.

Para nós, parecia ter uma vantagem: os chatos (e as chatas também) de nariz empinado jamais iriam entrar naquele botequim com jeitão pra lá de caído, tipo birosca mesmo. Tira-gostos, só aquelas sardinhas enroladas em cebolas e coisas do gênero. E a cerveja era baratinha.

Ledo engano. Um dia um leva um amigo ou uma amiga, uma paquera, e o amigo ou amiga leva mais alguém… Logo o bar começou a encher também. E uma mulher muito esperta, dona Rosa, vendo as possibilidades do estabelecimento, comprou o boteco, pintou, pôs umas mesinhas e mudou o nome para Bar da Tia Rosa. Nós do Clube Etílico, que ela já manjava, tínhamos todas as mordomias. Tanto que, quando ela resolveu pintar o estabelecimento, por conta própria imaginou que logo os fregueses iam começar a escrever bobagens nas paredes limpinhas, me deu tinta e pincel pra inaugurar a pichação, o que foi feito com muita pompa e comemorações. Virou sede oficial do Clube Etílico.

Ficaram famosas as culhãozadas que fizemos no Bar da Tia Rosa. O Cantagalo, estudante de História, trabalhava em alguma coisa relacionada a frigoríficos e, de vez em quando, levava meio saco de colhões de bois pra gente cozinhar lá. Nem era tão saboroso, mas tinha a fama de ser um afrodisíaco dos mais potentes. E a rua ficava tomada por gente que não cabia no bar, à espera da culhãozada.

Lá, a música deixou de ser só aquela cantada baixinho, os batuqueiros da Geografia o ocuparam e sempre rolava um samba do Ataulfo, do Noel Rosa, do Paulinho da Viola… Quem tocava surdo quase sempre era o Ossamu, um japonês estudante de física. Um dia chegou pra participar do batuque um negão boa pinta que, pelo jeitão, ganhou o direito de tocar o instrumento que quisesse. O coitado do Ossamu perdeu o posto de tocador de surdo, mas por pouco tempo. Apesar da pose, o negão era ruim de samba. “Em samba, você parece um sueco”, disse o Osvaldinho a ele, devolvendo o surdo ao Ossamu.

Um dia que me diverti foi quando matei o trabalho à tarde, passei no Bar da Tia pra tomar uma cerveja e fui pra biblioteca da Geografia estudar um pouco. Eram pouco mais de duas da tarde. Um estudante de engenharia bebia no balcão, com a Bete Louca. Percebi que ele queria embebedar a Bete com intenções que todo mundo já sabe. Ri sozinho. No final da tarde, voltei ao boteco pra tomar uma cerveja antes da aula e confirmei o que esperava: o balcão estava cheio de garrafas vazias. A Bete continuava bebendo. E o estudante de engenharia estava deitado no chão, completamente bêbado. 

Uma tarde, depois de muitas cachaças e cervejas, alguém disse que no Bar da Tia Rosa nem parecia que vivíamos numa ditadura, em 1970. Aquilo era um país à parte. Daí a proclamar a independência foi um passo. Criamos o “Santo Império Dissoluto, Etílico e Arbóreo”. O “arbóreo”, no caso, devia-se à paineira que era ponto de referência pra todo mundo que transitava por ali. Eu fiz o brasão do império, com duas garrafas cruzadas sobre um barril, uma cana de cada lado e embaixo a inscrição “tamos aí”.

Fui escolhido imperador e nomeei ministros e conselheiros. Lembro-me que o ministro dos transportes era o Cantagalo, que tinha um jipe e levava os mais bêbados pra casa. O Quincas ficou sendo meu escudeiro, mas o Ricardinho gozava: “Ex-cudeiro, não. Sempre-cudeiro”.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras.

7 comentários em De bar em bar VII: Bar da Tia Rosa

  1. Manuel Fernandes // 27/09/2011 às 10:09 pm // Responder

    Infelizmente não se fazem mais estudantes como nessa época. Boas e saudosas recordações de uma saudável convivência entre amigos.
    Parabéns pelo artigo.

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    • Mouzar Benedito // 29/09/2011 às 3:29 pm // Responder

      Obrigado, Manuel.
      Acho que um problema – além da mudança de “estilo” dos estudantes – é o que ocorre com os bares, que agora são muitíssimos, só que mais impessoais, mais caros e mais chatos.
      Mas de vez em quando a gente acha uns bons. Eu moro agora na Vila Madalena, lugar em que houve uma invasão de bares, mas poucos são frequentáveis. E raros têm os frequentadores fixos, aqueles que “marcavam ponto” nos botecos preferidos.
      Abraços.
      Mouzar

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  2. É interessante ler pois apesar de uma epóca um pouco diferente retrata nosso passado, que muito importante jamais devemos esquecer as lutas e glórias vividas !!! Abs Mouzar !! Ariel

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  3. Ah! Mouzar… antes do Café Paris, o bar se chamava “Bar do Hugo”!

    Abraços,

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  4. oi, mouzar, continuo distraida, nao vi data dessa publicação, adorei recordar…….Achei odete no Jornal dos Docentes da USP, mas adorei seu blog……Abração, Lea

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  5. Clovis Pacheco F. // 25/05/2016 às 2:27 pm // Responder

    Caro Mouzar, eu, lembre-se que eu, o Penão, era o ministro da Justiça, porque fui o juiz do julgamento do Laurindo, aquele dedo-duro do DOPS que um dia quebrou a estalactite que se parecia com um pinto duro. Você foi o promotor, e perguntou para ele porque fez aquilo, e ele disse que achava uma coisa muito feia. Sua resposta foi uma outra pergunta: que é que ele considerava um pinto bonito… Eu o sentencie à castração, baseado na Lei de Talião: “Olho por olho, dente por dente, pinto por pinto”. Quem foi encarregado de fazer a delicada operação foi outro estudante de História e professor primário, o falecido Faustão, de dois metros de altura e mais de cem quilos, um verdadeiro Obelix bigodudo, só que sem as tranças ruivas. Ele, antes de agir como carrasco, foi o policial que conduziu o Laurindo para a sala do tribunal, e sentou-o no banco dos réus simplesmente plantando a mão na sua cachola e pressionando-a para baixo. A gente tomava cuidado com o Laurindo, por ser bate-pau do DOPS, mas não deixava de cobri-lo de gozações, até pelo fato de que ele havia inventado uma peça de nome “bundoscópio”, um jogo de espelhos que servia para que, na cama, ele enxergasse a própria bunda, para castigar uma safira… Você narrou este caso no “Pobres, porém perversos”, em que apareço com o nome de Virgílio e o apelido de Penão. O único que teve dó dele foi o Baltazar…

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  6. Clovis Pacheco F. // 25/05/2016 às 2:32 pm // Responder

    Outra recordação é quanto ao Ossamu. Ele se formou em Física e se casou com outra nissei, e foram morar na Bahia, onde passaram a lecionar na Universidade Federal. O casal teve três filhos, que provocavam gargalhadas sempre que, vindo a São Paulo, visitar os avós, falavam com o maior orgulho que eram baianos… Ninguém acreditava, só quando mostravam os documentos, ainda que falassem que uma coisa boa era porreta, que um cara legal era arretado e quejando. Falavam até oxente, mais típica do Sertão que de Salvador… Quanto ao Ossamu, quantos ao invés de dizer-lhe o nome, diziam “Japonêis”!

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