Palavras, palavras, palavras…

"Carnaval nas montanhas", de Paul Klee (1924)

Por Izaías Almada.

Vivemos no melhor dos mundos possíveis.

Essa era, pelo menos, a tese do Dr. Pangloss, preceptor de Cândido, o personagem que dá título ao conto clássico de Voltaire, escrito na metade do século XVIII.

As aventuras e as peripécias vividas por Cândido, contudo, demonstram o contrário, sendo essa, em verdade, a intenção primeira do autor.

Três séculos depois, continuamos a buscar o melhor dos mundos possíveis, ou – em linguagem mais atualizada – demonstrar que um mundo melhor ainda é possível. Será?

Já não tenho a mesma convicção da minha juventude, muito embora não renegue em nenhum momento muitas das minhas ideias humanistas e socialistas com as quais convivo há cinquenta anos ou pouco mais. Nas tristezas e nas alegrias. Na esperança e na desesperança.

Ideias, muitas delas, que se chocam com a barbárie do mundo atual, onde o homem deixa cada vez mais de ser o protagonista da História, cedendo lugar aos novos deuses de um Olimpo bem menos mitológico e bem mais cruel e real do que o original helênico. Agora sem os seus Hades, Pósidon, Zeus ou Ares, mas com deuses de nomes mais pragmáticos para os tempos que se vivem: Ouro, Prata, Petróleo, Dólar, Euro, Ações e outros…

No momento em que a solidariedade abandona os palcos da nova Grécia, trocada pelo realismo financeiro ganancioso, o mundo é realimentado com a perspectiva de uma possível tragédia, não exatamente dentro dos conceitos aristotélicos, e onde para muitos talvez já não haja tempo para a catarse, para a purificação.

Suicidas imolam-se pelas ruas de Atenas, observados atentamente por milhões e milhões de olhos que, incrédulos ou apáticos, já não conseguem coordenar seus desejos ou satisfazer suas necessidades mais elementares.

Nas esquinas de Madrid, Roma, Londres ou Nova York, o verão dá lugar a um outono de árvores e corações mais ressecados que nunca, envolvidos pelos primeiros ventos frios do medo e do pessimismo.

A história da humanidade viu florescer ao longo dos séculos homens e mulheres que contribuíram para o tal mundo melhor: Aristóteles, Dante, Leonardo da Vinci, Galileu, Joana D’Arc, Rousseau, Smith, Marx, Freud, Jung, Pasteur, Mme. Curie, Einstein, Hawkins, Ana Neri, Sartre e Simone de Beauvoir, Ernesto ‘Che’ Guevara… Apenas para citar alguns poucos.

Esses e milhares de outros contribuíram para a construção de um mundo melhor. Criaram imensas possibilidades com suas ideias, atitudes e descobertas nos vários campos do saber para que esse planeta que habitamos fosse mais agradável de viver. Contudo, o ser humano parece se comportar como as serpentes, pois é da sua natureza trocar a pele e manter o veneno que possui para sua sobrevivência. E pior ainda: para desfrutar de algum tipo de poder, qualquer que seja ele.

Como Cândido, o mundo vai superando os obstáculos que se lhe antepõem, sempre sob o olhar otimista de muitos panglossianos renitentes. Entre o iluminismo, apenas para datar uma época, e o início do século XXI, muita água rolou por debaixo da ponte. Uma água cada vez mais poluída que corre para o mar das nossas iniquidades.

Às margens desse rio fétido, postam-se inúmeros guardiões de um sistema apodrecido por dentro, mas que insiste em edulcorar para os incautos e os distraídos as maravilhas de um mundo que já não é, nem de longe, o melhor dos mundos possíveis.

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 Trackback / Pingback

  1. Palavras, Palavras, Palavras… « Cirandeiras

Deixe um comentário