O sapo Gonzalo e Corto Maltese nos mares do sul

Por Luiz Bernardo Pericás.

Navegavam pelo Mar de Salomão em velocidade constante de oito nós.  Já haviam passado pelo Arquipélago de Louisiade e agora roçavam a costa da Nova Bretanha.  Corto Maltese conhecia como ninguém cada palmo da distante e isolada região, desde quando aquela ilha vulcânica, terra dos temíveis Duk-Duk, no Arquipélago de Bismarck, ainda se chamava Nova Pomerânia.  Kandrian, Gasmata e Totongpal haviam ficado para trás.  Na mesma linha geográfica de Sampun, se dirigiam agora para a parte sul da Nova Irlanda, e de lá, para o vasto oceano. 

Conduzia seu primeiro barco desde que o Maria Muito Santa havia afundado no Pacífico, um bom tempo atrás.  Desde então, sempre fora um marinheiro sem embarcação, um homem livre, que percorreu o mundo em iates ou balsas de outrem, em cargueiros ou em naves emprestadas.  Agora tinha um veleiro só seu, ainda que bastante velho, por certo, um modelo antigo e mal restaurado, repleto de remendos aqui e ali.  Não sabia quanto tempo mais iria durar.  Naquela tarde quente de verão, entretanto, parecia até um barco novo, recém-saído do estaleiro: um amigo da maior confiança. 

A vela principal, completamente aberta… As lufadas do vento forte e úmido que cortava aquelas ilhas impulsionavam o veleiro, enquanto as águas salgadas do mar borrifavam o rosto do experiente marujo e molhavam o convés. 

Naquele momento, Gonzalo, sentado na popa, apenas olhava a paisagem.  Há muito andava cansado de todos à sua volta, dos aborrecimentos, do barulho da cidade grande, das aporrinhações do cotidiano, das conversas inúteis, dos indivíduos que o cercavam.  E ali, finalmente, depois de anos, a paz de espírito que tanto buscava parecia invadir todos os seus poros.  Lá estava ele, o reumático sapo argentino, cheio de dores no corpo, perdido na imensidão do oceano sem fim.  A viagem à Austrália só o deixara mais revoltado.  E as sonhadas férias, numa rede balançando entre coqueiros, não haviam se concretizado. 

A presença de Corto, contudo, era um alento.  Ele não tinha amarras, nem país, nem documentos.  O aventureiro maltês talvez fosse o exemplo a ser seguido.  Quem sabe ele pudesse dizer algo que tocasse as profundezas mais recônditas da alma do batráquio. 

Gonzalo sabia que era difícil encontrar alguém com quem compartilhar suas histórias.  Sentia-se só na República do Repolho, o país do Carnaval, da pedofilia e dos feriados prolongados.  Não tinha interlocutores, uma pessoa que tivesse vivido o que viveu, que tivesse passado pelo que passou, que tivesse lido o que havia lido, ao longo de tantos anos.  A cretinice por toda parte, na televisão, nos outdoors, nas conversas de bar, nas discussões sobre futebol ou política, no Congresso Nacional, nas universidades, nas revistas, nos jornais.  Não havia escapatória.  Ou quem sabe houvesse.  Talvez ela estivesse lá, na imensidão silenciosa dos Mares do Sul.  Corto e Gonzalo tinham muito a conversar. 

“Você parece desanimado, Gonzalucho”. 

“É verdade…”

“Está pensativo…”

“Sim…”

As folhas amareladas de um livro de Kurt Vonnegut, esquecido num canto do convés, iam se dobrando paulatinamente, por causa da umidade e do sol implacável, que enrugavam o papel e deixavam a obra com um aspecto envelhecido.  Parecia o rosto de Gonzalo, que não conseguia esconder as marcas do tempo. 

Pelo menos, podia fumar ali, sem ser incomodado por ninguém.  Corto chupava uma cigarrilha baiana, que guardara desde que estivera pela última vez em Salvador.  Gonzalo, por seu lado, tragava o fumo negro de um Gaulois, presenteado pelo amigo marujo. 

“Imagino o que você está passando… Todos nós procuramos nosso lugar no mundo”. 

Un lugar en el mundo… Até me lembro de um belíssimo filme argentino com esse título…”

“Sim, Gonzalucho, um lugar no mundo”. 

“Tenho a sensação de que tudo em volta é uma grande farsa.  Veja a República do Repolho.  Lá só valorizam os cargos, as posições, os títulos… A primeira pergunta que fazem ao conhecer alguém é: ‘onde você está?’ Ou então: ‘qual cargo você ocupa?’ E também: ‘em que empresa ou ministério ou universidade você trabalha?’ Por fim, a indagação que serve como desfecho: ‘quanto você ganha?’ O indivíduo é definido e, quiçá respeitado, pela instituição da qual supostamente faz parte.  E pelo valor do salário que recebe… Mas veja o meu caso, um ex-exilado político, fugitivo, combatente… Meu histórico é feito apenas de lutas inglórias, de sofrimento, de cansaço… Um garoto espinhento e imberbe de vinte anos de idade pode passar na minha frente numa fila de emprego, só porque tem as indicações corretas, o currículo que mais agrada, os cursos que o contratante pede… Mas não tem um décimo de minha cultura, de minha vivência, de minha experiência…”

“Não se desespere, Gonzalucho.  Veja o velho Marx, por exemplo.  Teve uma vida de privações constantes, problemas de saúde, dificuldades financeiras… Ele nunca ocupou altos postos no aparelho de Estado nem teve posição social privilegiada.  Mas está aí, até hoje; criou algo que nenhum de seus contemporâneos conseguiu.  A grandeza está na obra, meu amigo”. 

“Mas a solidão…”

“Você está em boa companhia.  Tantos passaram por isso… Jack London, um conhecido meu de longa data, na juventude foi explorado, desprezado, escorraçado… Viu que a única forma de se salvar seria através da arte, sua arte… E se tornou livre por causa dela.  Era um excelente escritor, mas nunca foi ‘senador’, ‘ministro’, ‘presidente’… A sua arte, a sua personalidade e as suas ideias o definiam”. 

“Talvez você esteja certo…”

“O diretor do Guggenheim e o reitor da mais prestigiada academia de arte do planeta nunca pintarão como Modigliani.  Estas ‘autoridades’ se escondem atrás de seus cargos, vão a congressos e seminários, apresentam papers, fazem parte de comissões, dizem a todos que são importantes, que são profundos conhecedores da vida e obra deste ou daquele artista… mas nunca, nunca, nunca chegarão aos pés de Modi.  Nem de Chagall, Matisse, Pollock ou tantos outros.  Ao lado dessa gente, são formigas.  O tempo dá razão aos criadores e elimina os farsantes e os burocratas.  Você tem de ter paciência, companheiro”. 

As pessoas que Gonzalo mais detestava no mundo eram, de fato, os burocratas.  Por isso, as palavras de Maltese pareciam música para seus ouvidos. 

“Pense bem, Gonzalucho.  Há outros que, como você, tiveram de optar pelo caminho mais difícil, e eles também teriam dificuldades em se adaptar a uma vida mesquinha, comum, convencional.  Veja o Sup Marcos, por exemplo, o guerrilheiro zapatista.  Você acha que ele conseguiria largar tudo, tirar o capuz, encostar o fuzil e ir trabalhar numa repartição qualquer na Cidade do México? O que ele faria lá? Assinaria papelada num escritório? Passaria seus dias carimbando documentos? Não, Gonzalucho.  Ele fez sua escolha, talvez a mais difícil, e tem de conviver com ela.  Mas pelo menos foi capaz de tocar os corações e mentes de muitos, de mobilizar ideias, de estimular ações e pensamentos.  Se está certo ou equivocado, não vem ao caso aqui.  Ele, pelo menos, está lutando o bom combate e é um homem digno.  O que é mais do que se pode esperar da maioria dos imbecis e canalhas que conhecemos, e que se proliferam em todas as partes”. 

“Acho que você está certo, Corto.  É sempre bom ouvir sua opinião…” 

“É só você ver a lista de traidores de ‘esquerda’ que andam por aí, de sindicalistas a ex-guerrilheiros, de artistas a intelectuais, de gente que se dizia ‘revolucionária’ e que hoje está ganhando polpudos salários e ocupando altos cargos na administração pública, só preocupada com dinheiro e poder”. 

“E eu, que nunca quis isso…” 

“Vou lhe dizer uma coisa.  Talvez uma das melhores metáforas para o mundo em que vivemos é a primeira corrida de volta ao mundo em veleiros (sem paradas para consertos, reparos ou reabastecimentos), em solitário, a Golden Globe Race, que começou em 1968, uma competição de circunavegação da Terra solo, praticamente sem instrumentos ou equipamentos (nem barcos de apoio), numa distância de 27. 000 milhas, no total.  Se hoje uma volta ao mundo em veleiro parece relativamente fácil e rápida (na atualidade, o recorde é de 71 dias para realizar a façanha), naquela época os aventureiros ainda dependiam de sextantes e da posição das estrelas.  Não havia computadores de bordo, nem equipes de suporte ao longo do trajeto, apenas aparelhos de rádio precários ou de código morse, que eles utilizavam, de vez em quando, para se comunicar.  Em outras palavras, essa era uma odisséia de homens românticos, valentes, corajosos, de espírito livre, que, apesar do prêmio em dinheiro que receberiam se ganhassem, viam no desafio em si e na própria saga marítima os principais motivos para ir ao mar.  Essa corrida ficou na história principalmente por causa de dois competidores, Donald Crowhurst e Bernard Moitessier.  Mas tudo em torno dela é interessante”. 

Os olhos de Gonzalo já estavam brilhando de curiosidade. 

“Por favor, conte mais, che”. 

Essa foi a deixa para que o marinheiro começasse a relatar a incrível aventura. 

Era o final da década de sessenta, e o jornal britânico Sunday Times decidiu propor a corrida de volta ao mundo.  Os concorrentes teriam de sair da Inglaterra, seguir pelo Atlântico, dobrar o Cabo da Boa Esperança, percorrer os oceanos Índico e Pacífico, passando, é claro, pelo sul da Tasmânia e da Nova Zelândia, para então cruzar o Cabo Horn, na América do Sul e finalmente, retornar pelo Atlântico até a cidade de onde iniciara a jornada.  Qualquer pessoa poderia participar da competição.  E qualquer tipo de barco também.  O vencedor receberia um troféu e cinco mil libras.  Nove velejadores resolveram participar, mas apenas um chegou ao final. 

A disputa seria mais dura do que imaginavam.  Lá estavam John Ridgway, com seu English Rose IV, de 30 pés (9, 1 metros); Chay Blyth e o Dysticus III, com as mesmas dimensões; Robin Knox-Johnston, velejando o Suhaili, com seus 32 pés de comprimento (9, 8 metros); Loïck Fougeron, comandando o Captain Browne, também com 30 pés; o francês Bernard Moitessier, em cima de seu Joshua, de 39 pés (12 metros); Bill King no Galway Blazer II (42 pés ou 13 metros); Nigel Tetley no Victress, de 40 pés; o italiano Alex Carozzo, no Gancia Americano, o maior de todos os barcos, com 66 pés (ou 20 metros); e finalmente, o inexperiente Donald Crowhurst, no trimarã Teignmouth Electron, de 40 pés de comprimento. 

A corrida foi uma confusão.  Chay Blyth, por exemplo, um sargento do exército de 27 anos de idade, nunca havia velejado antes, apenas remado no Atlântico.  Mesmo assim, quis participar.  Como se pode imaginar, não foi longe.  Saiu de Hamble e permaneceu apenas três meses dentro da competição, até acabar sua jornada em East London, África do Sul.  Loïck Fougeron, Bill King e Nigel Tetley partiram de Plymouth.  Os dois primeiros também deixaram o evento depois de três meses navegando, Fougeron em Santa Helena e King, na Cidade do Cabo.  Já Tetley, um veterano da Marinha Real, após oito meses de corrida, foi resgatado após seu trimarã afundar perto dos Açores, no Atlântico Norte.  Ele iria se suicidar pouco tempo depois.  John Ridgway, que começou sua viagem em Inishmore, durou menos ainda: um mês e meio depois da partida, terminou sua corrida no Recife, Pernambuco.  O italiano Carozzo, por seu lado, zarparia de Cowes, e ao término de duas semanas navegando, veria o fim de sua participação no Porto.  O grande vencedor foi Robin Knox-Johnston, com 29 anos na época, que saiu de Falmouth, e retornou à mesma localidade após dez meses de volta ao mundo, em primeiro lugar.  Ele diria mais tarde que o único equipamento “avançado” para avaliar as condições climáticas que levava em seu barco era um barômetro retirado da parede de um pub! Mas os dois personagens mais excêntricos e marcantes desta história são Crowhurst e Moitessier… 

Em anos recentes, o documentário Deep Water narrou com detalhes a vida trágica de Donald Crowhurst.  E publicações como The Independent, The Times of London, Sports Illustrated e The Guardian iriam dar mais informações sobre aquele navegador britânico… 

Quando partiu de Teignmouth, Devon, em 31 de outubro de 1968, Donald Crowhurst, de 35 anos de idade, sabia que teria muita dificuldade em ganhar a corrida de volta ao mundo.  Mas era um obstinado.  Desde criança, leitor voraz de Rudyard Kipling, sonhava com aventuras.  Depois de voltar da Índia, onde passara a infância (o pai era funcionário das ferrovias lá), trabalhou em Londres numa fábrica de produtos eletrônicos e mais tarde, se casou e teve quatro filhos.  Expulso da RAF, onde fora piloto, criou uma pequena empresa em Somerset, a Electron Utilisation, e inventou o Navicator, um novo aparelho de navegação marítima.  Na mesma época, comprou uma chalupa, na qual velejava nos finais de semana.  Nunca chegou mais longe do que a Baía de Biscaia.  Sua inexperiência era patente.  Isso, contudo, não o intimidou de início.  Ao saber da Golden Globe Race, esse marujo amador, impulsivamente, decidiu participar.  Seria a oportunidade de mostrar a todos a eficiência de seu Navicator, que provavelmente (pensava ele) seria vendido mundo afora após ser testado e aprovado em alto mar.  Crowhurst também realizaria o sonho de aventuras no vasto oceano e demonstraria a todos sua bravura.  Um grande entusiasmo tomou conta da Inglaterra, já que um homem comum, como qualquer outro no Reino Unido, sem grande técnica e com pouco dinheiro no bolso (porém com muita coragem), iria se arriscar em ambientes inóspitos e climas bravios, contra todas as expectativas e contra vários marinheiros mais preparados. 

Para conseguir realizar a façanha improvável, Crowhurst pegou um empréstimo de um businessman pouco confiável, Stanley Best, para desenvolver e construir seu barco.  Mas Best exigiu que o dinheiro gasto na embarcação teria de ser todo devolvido caso o competidor não conseguisse completar a prova.  Donald aceitou. 

Por outro lado, o jornalista e assessor de imprensa da prefeitura de Teignmouth, Rodney Hallworth, depois de fechar um negócio com o velejador (ele intermediaria contratos de publicação e divulgação da “aventura” caso o competidor desse o nome de seu barco em homenagem àquela cidade), começou a vender a imagem para o grande público de que Crowhurst era o típico representante do povo lutando contra gigantes, e que teria reais possibilidades de vencer.  Tudo uma ilusão.  Crowhurst, que já se via às voltas com problemas financeiros, estava agora mais do que endividado.  E sentia que não poderia mais abandonar a competição no último minuto.  A pressão de Best, seu patrocinador, e do grande público (que o via como uma celebridade e herói nacional); o medo do fracasso e da desonra; a preocupação em ter de devolver uma quantia que não poderia pagar, de perder sua casa (usada como garantia caso desistisse da empreitada antes do início da competição ou durante a corrida) e, consequentemente, de deixar sua família completamente desamparada; o temor de ir à falência… tudo isso era um peso demasiado para ele. 

A situação se complicava.  No dia anterior à sua partida, ele chorou muito junto com sua esposa, num quarto do Royal Hotel.  Era tarde demais para desistir.  E ele sabia que teria de escolher entre perder todo seu dinheiro e sua morada caso ficasse, ou a própria vida, caso seguisse em frente.  Decidiu continuar. 

Crowhurst havia encomendado a construção de um trimarã a uma firma de Norwich, mas o barco não era bom, e uma jornada que deveria levar três dias, daquela cidade até Teignmouth (de onde partiria oficialmente), durou duas semanas.  O trimarã havia sido mal construído, tinha infiltrações, fazia água.  Na hora da largada, teve de voltar, “guinchado” para o porto, por causa de problemas com as velas, que travaram. 

Finalmente partiu, porém um mês mais tarde Crowhurst já se dera conta de que não conseguiria completar a jornada.   O fato é que não conseguia sequer percorrer o Atlântico.  Enquanto outros competidores já estavam longe, o aventureiro amador mal saía do lugar.  Foi então que cortou toda a comunicação com terra firme.  Ficaria onze semanas sem dar notícias, e todos temiam pelo pior.  Até que reapareceu, mandando mensagens de que já havia praticamente dado toda a volta ao mundo e que estava novamente no Atlântico, a caminho de vencer a competição.  Tudo mentira. 

Com o Electron em condições precárias, sem possibilidades de ir para o Cabo da Boa Esperança (podia afundar a qualquer momento), ele optara por ficar meses e meses próximo da costa do Brasil e Argentina, inventando posições, fazendo anotações falsas em seus diários de bordo e relatando uma viagem imaginária para seus apoiadores na Inglaterra.  Chegou até a ancorar rapidamente num porto de pescadores argentinos para fazer reparos na frágil embarcação.  De acordo com os relatórios de Crowhurst transmitidos por rádio, ele havia batido todos os recordes de velocidade e tinha tudo para ganhar.  Mas ele também guardava um logbook verdadeiro, com suas posições reais no mapa, suas angústias e aflições.  Esse seria o testamento.  Ao que tudo indica, Crowhurst se deu conta de que estaria em maus lençóis se vencesse.  Os juízes e velejadores profissionais iriam passar um pente fino em todas as anotações, mapas, diários de bordo, e descobririam a farsa.  Saberiam que ele nunca havia ido além do Atlântico, ou seja, que nunca havia circunavegado o planeta. 

Apoderado pelo pânico, diminuiu a velocidade, e avisou aos amigos, em radiotransmissões, que não conseguiria alcançar Tetley, que seguia em alta velocidade em direção à vitória.  Se Crowhurst chegasse em segundo lugar, provavelmente ninguém esquadrinharia seus diários com tanto rigor.  Mas Tetley, preocupado com a aproximação de Donald, forçou seu barco até o limite e afundou.  Crowhurst, assim, estava a caminho de ganhar! E isso era tudo o que ele não queria naquele momento.  Entrou em profunda depressão.  Não sabia mais o que fazer… 

Seu barco foi encontrado abandonado, no dia 10 de julho de 1969, sem nenhum sinal do capitão.  O corpo de marujo nunca foi encontrado.  Muitos acreditam que ele, envergonhado com suas mentiras e atemorizado de ter de enfrentar a família e o grande público, se suicidou, levando consigo seu diário de bordo falso.  A esposa, contudo, contesta, e acha que ele, em estado mental alterado devido à solidão, escorregou do convés e se afogou no mar.  Nunca se saberá, de fato, a verdade sobre o ocorrido. 

Crowhurst entrou para a história como um mentiroso, um homem que faria de tudo para ganhar um bom punhado de libras, até mesmo forjar uma situação falsa numa competição e passar a perna nos outros contendores.  Foi desta forma que jornalistas, escritores e documentaristas o retrataram ao longo das décadas.  Mas um cineasta soviético que realizou um filme sobre o velejador inglês mostrou uma faceta distinta, apresentando uma interpretação mais realista e decente do inexperiente marujo.  Para o diretor russo, Crowhurst seria o símbolo de um homem comum, decente, que lutava para garantir uma vida digna para a família e que tentava ganhar um senso de honra para si, mas que foi esmagado pelo sistema capitalista, que o obrigou a seguir adiante, mesmo sabendo que a competição poderia matá-lo; um indivíduo cercado por gente gananciosa, que só queria patrociná-lo e divulgá-lo enquanto ele interessava economicamente, mas que o desprezou assim que não tinha mais serventia; que poderia tirar seu orgulho e a casa de sua família num estalo de dedos, sem a menor piedade; e que o forçou a tomar uma decisão equivocada porque só se preocupava pelo dinheiro que poderia ganhar com sua aventura.  No final, Robin Knox-Johnston iria se sagrar o campeão e doaria todo o prêmio para a família de Crowhurst.  Uma história trágica… 

“Fico com a versão do cineasta soviético, Gonzalucho”, disse Corto. 

“Eu também, mi querido”. 

“Já não há o mesmo romantismo nos dias de hoje.  É difícil achar homens desta estirpe”. 

“Você está certo, compañero…

“Por outro lado, isso tudo mostra como é difícil escapar deste mundo de predadores, ganaciosos, sanguessugas, parasitas, aproveitadores, que só querem saber de dinheiro.  Por isso, temos de criar um mundo paralelo, mágico, e nele transitar.  Se você descobre e vivencia esse outro mundo, acaba encontrando muita gente que pensa e age como você.  Mas que está ‘escondida’, pouco visível, no mundo supostamente real”.   

“Interessante o que você está dizendo… Mas ainda falta outro competidor, se não me engano, um francês…”

“Isso mesmo.  Trata-se de Bernard Moitessier, talvez o maior de todos…” 

“Então fale, che! Já estou curioso…”  

“Pois bem… Vou lhe contar sua história”. 

Entre todos os competidores, Bernard Moitessier era, provavelmente, o mais interessante.  Ele nasceu em 1925, em Hanoi, na Indochina (ainda colônia francesa), onde seu pai trabalhava.  Diz a lenda que durante a Segunda Guerra Mundial chegou até mesmo a ser preso pelas autoridades japonesas, por ter colocado a bandeira tricolor na varanda de sua casa.  Pois bem, ele partiu do Vietnã alguns anos mais tarde, entre outros motivos, por não querer integrar as tropas do exército do seu país que iniciava a luta contra o povo local.  Afinal de contas, ele não tinha nenhuma vocação para soldado.  A última coisa que passaria por sua cabeça seria matar outro ser humano…

Os relatos sobre sua biografia, que estão difundidos por toda parte, em artigos e livros, e que são bem conhecidos do público, informam que quando jovem, velejava com pescadores da região, e depois, em juncos.  Foi justamente como membro de tripulação de uma dessas balsas chinesas usadas no comércio de mercadorias que partiu rumo à sua vida de aventuras.  Seu primeiro barco, um velho queche de 12 metros, durou pouco.  Depois de afundar, comprou o Marie Thérese na Indonésia, com o qual navegou, sozinho, até a França.  A viagem foi uma loucura.  Até chegar à Europa, passou por muitos percalços.  Na altura das Seicheles, no Oceano Índico, teve de consertar, sozinho e na marra, o fundo do queche, com profundas rachaduras e fendas que andavam causando sérias infiltrações de água e ameaçando que o barco fosse a pique; depois, sem instrumentos de navegação, entrou numa violenta tempestade e foi jogado nas costas de Diego Garcia; deportado logo em seguida, foi parar nas Ilhas Maurício, onde trabalhou por alguns anos, até poder velejar novamente em um barco que fosse seu.  Seguiu para o Caribe, com escalas na África do Sul e Santa Helena.  Mas quando estava no caminho entre Trinidad e Santa Lucia, naufragou.  Acabou chegando a Trinidad; pouco depois, atravessou o oceano, trabalhando num navio cargueiro, até a cidade alemã de Hamburgo; e então, finalmente, acabou seu périplo na França.  Lá se casou e escreveu seu primeiro livro, Vagabond des Mers du Sud, um grande sucesso de público e de crítica. 

Naquela época, Moitessier construiria o seu lendário Joshua, um queche de aço, vermelho e preto, com o deck branco, que recebeu seu nome em homenagem ao eminente e intrépido capitão nascido na Nova Escócia, Joshua Slocum, o primeiro homem a dar a volta ao mundo sozinho.  Um detalhe vale a pena ser mencionado: os mastros da embarcação eram, na verdade, postes telegráficos adaptados! Pois bem, Moitessier viajou pelos quatro cantos do mundo com sua esposa no Joshua, passando pelo Marrocos, Canárias, Trinidad, Canal do Panamá, Galápagos, Taiti, Cabo Horn, até retornar para Marselha.  Essa jornada com sua mulher iria torná-lo famoso mundialmente.  E dela surgiria o best-seller Cap Horn à la voile: 14. 216 milles sans escales, de 1967.  Até que, em 1968, decidiu participar, mesmo que relutante, da Golden Globe Race.  Afinal de contas, ele tinha prazer em velejar sem obrigações, e não gostava da ideia de competir. 

Moitessier levou o Joshua até Plymouth (tinha de partir de um porto inglês) e no dia 23 de agosto de 1968, levantou âncora como um dos favoritos a ganhar a corrida.  No Cabo da Boa Esperança, colidiu com um cargueiro, e pouco depois, foi atingindo por uma onda enorme.  Mas conseguiu se safar das duas situações de risco.  No Oceano Índico, deprimido, utilizou técnicas de meditação e ioga para conseguir seguir adiante! Afinal de contas, sentia-se mal, desconfortável consigo mesmo, achando aquilo tudo uma farsa.  Estava supostamente competindo por glória, fama e carcanhóis.  Mas, no fundo, não queria nada daquilo. 

Ao cruzar o Cabo Horn, sua saúde psicológica já estava em frangalhos.  Meses de solidão e a perspectiva de voltar à Inglaterra, de ser cercado por multidões de fãs, de fotógrafos e de repórteres, de flashes e holofotes, de entrevistas e adulações… tudo isso o corroía por dentro.  Moitessier costumava comentar que partir de Plymouth e voltar para a mesma localidade, seria o mesmo que sair do nada e chegar a lugar nenhum.  Justamente ele, que dizia se considerar um cidadão da mais bela nação do planeta, uma nação imensa, sem fronteiras nem limites, feita de vento, luz e paz, e que só tinha como governante o mar! Um homem que pensava desta forma não podia se vender por um troféu e uma conta bancária recheada de baguines. 

Moitessier agora se encontrava no Atlântico Sul, a pleno vapor.  Até que tomou a decisão mais radical e intrigante para todo o público que acompanhava a Golden Globe Race.  Mandou uma mensagem para os organizadores da competição: havia decidido abandonar a corrida! O fato é que o velejador francês estava indo bem, e tudo indicava que ele tinha boas chances de vencer.  Mesmo assim, largou tudo e tirou aquele peso das costas.  Não gostava da civilização e queria ficar longe dela.  Como ele mesmo disse, para justificar sua decisão, “vou seguir em frente, sem escalas até as ilhas do Pacífico, porque me sinto feliz no mar; e também para salvar minha alma”.  Ele então mudou de rumo e continuou sua aventura marítima em direção, mais uma vez, ao Cabo da Boa Esperança, e de lá, para o Taiti.  Em outras palavras, deu uma volta e meia ao mundo, sozinho, num total de 37. 455 milhas, durante 10 meses, batendo todos os recordes.  Mas tudo isso por puro prazer! A única companhia que tinha era a de um corvo, com o qual conversava em alto mar.  Ele terminou essa que foi considerada por ele como um “jornada espiritual”, no Taiti, em 21 de junho de 1969, e iria escrever mais um livro, o seu La longue route, seul entre mers et ciels, lançado em 1971, considerado outro clássico do gênero.  Foi, sem dúvida, um dos maiores marinheiros de nosso tempo. 

“Você vê, Gonzalucho.  Ainda há homens como Moitessier.  São poucos, é verdade, mas eles nos dão alento e nos mostram que é possível viver com dignidade”. 

O sapo argentino ouvia tudo, sem dizer uma palavra sequer.  Apenas concordava com a cabeça.  E fumava.  Tudo em volta agora era silêncio.   

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

1 Trackback / Pingback

  1. As aventuras do sapo Gonzalo e Luiz Bernardo Pericás no Blog da Boitempo | Blog da Boitempo

Deixe um comentário