O verde Vermont

Por Flávio Aguiar.

Há 47 anos atrás vivi por um ano com uma família norte-americana, no pequeno estado de Vermont, no nordeste dos Estados Unidos, fronteira com o Canadá. Foi uma experiência extraordinária, que mudou a minha vida.

Quando fui para lá, tinha 17 anos e pensava em estudar Medicina. Queria ser psicanalista ou psiquiatra. Quando voltei, tinha 18 anos e estava decidido a estudar Letras e viver da literatura. Eu me apaixonara pela literatura inglesa, graças a uma professora extraordinária, Gladys Colburn, na Burlington High School, onde terminei o curso colegial, como um American Field Service Exchange Student.

Sempre digo que a professora Gladys Colburn merecia uma condecoração pelo número de vidas que salvou ao me impedir de me tornar médico. Também ajudou o fato de que os professores locais, pressurosamente, me propiciaram uma visita ao setor psiquiátrico do principal hospital do estado, ligado à Universidade de Vermont. Essa visita me convenceu que aquela não era a minha praia.

Graças à minha então recém desperta paixão pela literatura, escrevi meus primeiros poemas em Vermont. Eram dois, e ambos eu escrevi em inglês primeiro, depois passei para o português. Perdi ambos. Mas isso foi bom. Talvez hoje eu os abominasse, enquanto a memória de que os escrevi me anima constantemente.

Mas além de pequeno, Vermont era um estado tido como “atrasado”. Era predominantemente rural. Houvera um princípio de industrialização, mas que não fora muito adiante. Diante dos “gigantes” ao lado, Nova Iorque, Massachussets, Vermont era o exemplo da pequenez e da humildade. Havia exemplos desse “atraso”. Lembro-me que uma das conferências que fiz foi para um colégio interno que abrigava jovens “desajustados” na cidadezinha de Stowe, no alto das montanhas (belíssimas, por sinal), no centro do estado. Um grande número desses jovens vinha da prestigiosa Califórnia, terra dos protestos e dos “avanços”. E eles falavam de Vermont com desprezo, criticando a pequenez, o provincianismo, um estado “backwards”, no seu dizer. Na Califórnia sim, se vivia o “para diante”. Havia os protestos contra a guerra do Vietnã, por exemplo, quando isso ainda não era “popular”. Sem falar no trato com as garotas. Para mim Vermont era adiantadíssimo, cheio de liberdades que no Brasil só haveria no Rio de Janeiro, que assim mesmo eu só conhecia de “ouvir falar”. Para eles, parecia um internato de freiras, ou um acampamento de Bandeirantes. E eu ficava imaginando as mirabolâncias da Califórnia.

Dou um outro exemplo, de que fui testemunha direta. Um colega de escola usava um cabelo tipo Beatle – coisa que hoje, convenhamos, é quase conservadora. Pois o Conselho da escola se reuniu e decidiu que ele tinha de cortar o cabelo, se quisesse continuar a frequentar a escola!

Pois bem. Depois, com o passar do tempo, voltei a Vermont três vezes, sempre muito rapidamente: em 1980 ou 81, em 1985 e em 1986. Portanto, fazia exatos 25 anos que eu não voltava lá. Então voltei, no mês passado.

E encontrei um Vermont e uma Burlington (a cidade em que morei) superprogressistas, definidos como os espaços alternativos por excelência do país. Vermont é ainda descrito como um estado “à esquerda” no espectro político norte-americano, senão o mais à esquerda, enquanto a Califórnia recentemente amargou a eleição de Schwarzenegger, o exterminador republicano do futuro. Neste estado do extremo oeste também é grande a resistência aos casamentos de pessoas do mesmo sexo. Enquanto isso, no ainda pequeno mas ex-atrasado Vermont, assistimos, eu e minha esposa, a um casamento em regra festejado no hotel onde estávamos entre duas mulheres, uma claramente de noiva e a outra claramente de “noivo”, de assim posso me expressar, pelos trajes que usavam. Eram jovens, bonitas e desempenadas. Um gosto de se ver.

E as ruas de Burlington, recheadas de cafés e restaurantes (em 1964 só havia um, talvez dois), eram tomadas durante a noite por uma onda de jovens estudantes. Vermont se tornou todo ele um “estado universitário”. Mas só isso não explica a mudança completa de perfil cultural e político por que o estado passou.

A explicação tem de ir mais longe. É que o mundo ao redor deu voltas também. De um lado, os Estados Unidos – como mostra o caso da Califórnia – deram em vários aspectos um “salto para trás”. O país tornou-se espiritualmente mais conservador, com o triunfo neo-liberal e também com a mais recente ascensão de um conservadorismo enrustido, de que o Movimento Tea Party é tão somente o último rebento. Do outro lado, por esses movimentos curiosos, o pequeno Vermont (pouco mais de 600 mil habitantes; Burlington, a maior cidade, 42 mil e pouco) passou de uma sociedade “pré” a uma sociedade “pós-industrial”, usando-se tais conceitos bem livremente.

De qualquer maneira na Burlington de hoje, multi-cultural e multi-colorida, com todos os tipos de cabelo em toda parte, um caso como o do cabelo do meu colega de antanho é impensável.

Ainda bem. O que mostra que a história, às vezes, pode fazer piruetas.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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