O menino que virou um homem de aço

Por Mouzar Benedito.

Saiu recentemente, pela Boitempo Editorial, a segunda edição da autobiografia de Gregório Bezerra, escrita quando ele estava no exílio, na União Soviética, depois de ter sido libertado de uma das suas muitas prisões, trocado pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado em setembro de 1969.

É conhecida a reputação de Gregório Bezerra, militante comunista conhecido por sua coerência, pela sua resistência de ferro e por sua generosidade. Isso é visível no livro.

Mas eu gostaria de ressaltar aqui a sua vida anterior à militância e à própria consciência política. Imagine uma família pobre do Agreste pernambucano, com muitos filhos pequenos, que choram de fome e ouvem da mãe triste a única coisa que ela poderia dizer: “Dorme que a fome passa”.

E tem também a sede, nos períodos de seca. Quando se consegue água, é um líquido infecto que causa problemas no estômago e no fígado.

Essa é a família de Gregório Bezerra. Um menino que, quando completou quatro anos de idade, ganhou como presente uma enxada, com a consideração dos pais: “Agora você já é um homem, precisa trabalhar pra ajudar a família”.

Passou a ter mesmo responsabilidades de homem, inclusive a de ir buscar água a quilômetros de distância, mas era um homem que nem sequer tinha calças para vestir. Isso mesmo: havia um hábito não só no Nordeste, nas zonas rurais, de darem às crianças pequenas camisas, ficavam com a bunda de fora. Gregório tinha apenas uma camisa!

Crescendo, sempre a trabalhar, Gregório tinha dois sonhos, fora o de não mais passar fome: ganhar uma calça e ir para a escola. Sobre as calças, lhe diziam que só depois de completar dez anos. Sobre ir à escola, chegou a se arrepender de pedir isso à mãe, pois ela ficou mais uma vez muito triste dizendo que não havia como, pois, se ele fosse precisariam mandar os outros filhos também, e a família não tinha condições.

Indo para a cidade, levado por uma família rica que lhe prometeu alfabetização, o que nunca cumpriu, Gregório foi praticamente escravizado. Teve que fugir e viver nas ruas, carregando malas e depois vender jornais, dormindo no buraco de uma ponte.

O livro é muito extenso, um calhamaço de mais de 600 páginas. A história de Gregório Bezerra até chegar ao início de sua militância e à primeira prisão, em que conviveu com o lendário líder cangaceiro Antônio Silvino, é apenas o início da primeira parte.

Ela impressiona por mostrar como um menino que deveria estar no jardim de infância trabalha como um homem, tem responsabilidades de adulto, é vítima de um monte de injustiça e consegue ter a sensibilidade até de ver bondades entre as muitas maldades que sofreu. Impressiona também por testemunhar como alguém nessas condições não caiu na marginalidade.

Recomendo para ser lido por todo mundo, mas acho que deveria ser leitura obrigatória para pessoas que esbravejam contra programas governamentais que dão um dinheirinho de nada para que famílias como as de Gregório Bezerra comprem comida. Ah, como a vida dele seria melhor. E principalmente menos cheia de injustiças.

Os ricos e as pessoas da classe média precisam algum dia saber diferenciar fome de apetite. A “baita fome” que passam é o atraso do almoço ou do jantar. Diferente da fome de quem não comeu nada ontem nem hoje e não sabe se vai ter o que comer amanhã ou depois.

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras.

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Debate de lançamento das Memórias de Gregório Bezerra

A Boitempo Editorial convida para uma série de debates gratuitos (sem necessidade de inscrição prévia) em torno do livro Memórias, autobiografia do lendário líder camponês Gregório Bezerra. Os eventos marcam o lançamento da nova edição da obra que inspirou gerações de militantes em todo o Brasil.

14/09 – São Paulo (SP)

Sala 8 – Filosofia – FFLCH/USP

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cidade Universitária – (11) 3091-8592

“Gregório Bezerra e a história do comunismo no Brasil” – integrando a programação do IV Colóquio Marx e os Marxismos | LeMarx-USP

Debate com Antonio Carlos Mazzeo (Unesp e PCB), Francisco de Oliveira (USP), João Quartim (Unicamp) e Plínio de Arruda Sampaio (PSOL).

Realização: Laboratório de Estudos Marxistas da Universidade de São Paulo (LeMarx-USP) e Boitempo Editorial.

2 comentários em O menino que virou um homem de aço

  1. Às vezes a gente nem pensa que um passado duro e sofrido pode formar uma pessoa com uma índole tão boa. Gregório venceu na vida e virou homem como muitos, com tanta facilidade na vida, não vão conseguir fazer.

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  2. João Nelson Silva // 07/04/2012 às 3:19 am // Responder

    Conheci Gregório Bezerra na Casa de Dentação em Recife. Aos domingos, à tarde, dia de visitas, trocamos idéias sobre praticas revolucionárias concretas. Gregório, revolucionário feito de “ferro e flor” me dizia “a qualquer momento posso sair daqui”. Riamos. Em poucos dias Gregório saiu. Tenhos os dois volumes MEMÓRIAS 1900 – 1945 e a segunda parte Memórias 1946 – 1969. Gregório é meu camarada inseparável. João Nelson

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