Duas historinhas eróticas e… neoliberais

"Uma moderna Olímpia", de Paul Cézanne (1872-74)

Por Izaías Almada.

JULES E JIM

Nando já vira a cena num filme francês. Dois homens e uma mulher. Não era a mesma coisa, nem mesmo lida em Dona Flor, não, não… Jules e Jim eram os dois vivos, e bem vivos.

Nando recebeu o convite de Eva para subir ao apartamento dela e beber um cafezinho. Estava animado, pois Eva, além de bonita e provocante, era um pouco mais velha do que ele. No apartamento encontrou Danilo, de olhos postos na novela das oito. Podia ser o irmão ou apenas um amigo, mas não era. Era o próprio marido. Encheu-se de dúvidas e medos, tendo engolido o cafezinho sem o menor prazer. Uma armadilha? Um casal à procura de aventuras a três? Então, que não contassem com ele. Tentou disfarçar falando do trabalho no escritório. O marido sorriu, desligou a televisão, deu um beijo em Eva e disse que voltava dali a duas horas. Estava desempregado.

Constrangido a princípio, Nando foi se pondo à vontade, quando Eva reapareceu na sala só de roupão, convidando-o para o banho. Ele apontou a porta da sala como se fosse perguntar pelo Danilo. Eva colocou-lhe suavemente os dedos na boca e disse que não se preocupasse. Tomaram banho juntos e Eva mostrou-se insaciável.

Solto, como gostava de se sentir nesses momentos, ainda assim Nando não conseguia livrar-se da preocupação inicial para aquela traição tão explícita. Eva, notando a curiosidade do parceiro, cara satisfeita, corpo relaxado, resolveu explicar-se.

A sobrevivência com dignidade era importante. Ela e Danilo se amavam, mas logo aprenderam que sem a despensa fornida, a geladeira cheia e as necessidades básicas atendidas, como o aluguel, luz, gás, telefone, a prestação do carro, a assinatura do jornal, a televisão por cabo, a Internet, o celular, os juros do cartão de crédito, o cinema aos fins de semana, o vinho importado, sem todos esses prazeres conjugados, a vida era muito difícil. Precisavam de parcerias para o seu projeto de vida. Estaria ele, Nando, interessado? Tinha só que ajudar nas despesas e dispor de quatro horas de sexo por semana, sem medos ou qualquer sentimento de culpa.

Saiu intrigado. No hall de entrada, ainda surpreso com aquilo tudo, Nando cruzou com Danilo que voltava abraçado a uma loira fenomenal. “Então”, perguntou o marido, “acertaram tudo?”. “Fiquei de pensar”, respondeu Nando, “mas achei a proposta interessante”. O marido deu as costas e deu umas palmadinhas na bunda da loira fenomenal:

“Não demore a responder, pois é possível obter umas vantagens extras!…”               

A NOVA ECONOMIA

“O homem não tem passado e também não tem futuro”. Essa era a reflexão mais acurada de Eva, que aos treze anos foi deflorada pelo padrasto no interior de Goiás. E que aos vinte vendia seu corpo nas ruas de São Paulo. Sua história, não era diferente da história de milhares de outras meninas pelo Brasil afora.

Afinal, a quem importaria saber se Eva se tornara prostituta porque fora expulsa de casa e da sua terra no sertão goiano? Para ela o que importava agora era satisfazer bem aos clientes, pois, se assim não fosse, ainda poderia ficar sem receber o combinado pelo serviço ou levar umas boas porradas. Os rapazinhos que andavam pelas ruas dos Jardins adoravam mostrar a sua macheza incipiente com as prostitutas.

“O futuro a Deus pertence”, era outra frase que Eva costumava repetir. Reduzida em primeiro lugar a uma simples estatística de crianças abandonadas e mais tarde à categoria de mulheres que necessitavam de cuidados médicos, Eva frequentava a prostituição chique das ruas da cidade. Só atendia a clientes de carro, meninos de classe média ou jovens executivos que jogavam na bolsa e apostavam seu futuro no índice Nasdaq, coisas com as quais Eva nem sonhava. Na verdade, Eva sonhava com outras coisas mais simples. Sonhava, por exemplo, em reencontrar os dois irmãos mais novos que ficaram em Goiás. Sonhava com o dia em que mudaria de profissão, queria ser atriz de novelas na televisão. Sonhava, como agora, em arrancar aquele membro a dentadas e cuspi-lo em plena Avenida Paulista…

* Publicadas originalmente em O vidente da rua 46, livro de contos eróticos do autor.

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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