As Margaridas e a primavera brasileira

Fotografia por Claudia Ferreira

Por Edson Teles.

No último dia 17 de agosto, em Brasília, ocorreu a 4ª Marcha das Margaridas, reunindo 50 mil mulheres do campo em luta por direitos de gênero, dos trabalhadores rurais e por visibilidade da grande mídia para sua condição diferenciada. O ato, centralizado na organização da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), contou com o apoio de várias federações e sindicatos de trabalhadores rurais, movimentos de mulheres e feministas, inclusive com a participação de movimentos sociais de partes da América Latina.

Entre as principais reivindicações estavam a luta pela reforma agrária, com a atualização dos índices de produtividade na terra; o crédito rural para mulheres; a atenção especial à documentação trabalhista das trabalhadoras rurais para efeito de benefícios previdenciários; e políticas concretas de combate à violência contra mulheres.

O nome da manifestação é uma homenagem à história de Margarida Maria Alves, líder sindical assassinada por um pistoleiro, em 12 de agosto de 1983, a mando de usineiros da Paraíba. Margarida foi, durante 12 anos, presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alagoa Grande, a 100 km de João Pessoa. O crime, cometido ainda em meio à ditadura militar, não foi solucionado e os responsáveis gozam da impunidade típica da sociedade brasileira.

Este evento em Brasília ilumina duas questões fundamentais de nossa democracia: por um lado, leva-nos a refletir sobre a pouca participação política da sociedade civil, especialmente a fraca intervenção dos movimentos sociais nos rumos das políticas públicas; por outro lado, acentua a grave cultura de violência e impunidade, com destaque para a repressão aos movimentos ligados à questão da terra.

Os movimentos sociais sofrem uma perda de representação e de mobilização desde meados da década de 90. Fato marcante deste refluxo de ações organizadas foi a greve dos petroleiros, iniciada em 03 de maio de 1995 e que durou 32 dias. Na época, sob o governo de FHC, o Estado brasileiro apostou no conflito visando quebrar a capacidade e a vontade política dos sindicatos, com medidas como a intervenção nos sindicatos e o bloqueio de suas contas. Apesar de a maioria dos demitidos terem sido reintegrados, a força dos sindicatos foi refreada. Durante os últimos dois mandatos governamentais, justamente sob a presidência de um ex-sindicalista, o país viu os movimentos sociais serem aos poucos assimilados pela ação do Estado. Hoje, dificilmente há um evento na área de direitos humanos que não seja financiado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, causando grande dano à autonomia dos movimentos. A condição atual empobrece a pluralidade dos debates na esfera pública e bloqueia a possibilidade de novos rumos na política.

A outra faceta da sociedade brasileira iluminada pela “Marcha das Margaridas” é a impunidade confirmada pela inoperância do ordenamento jurídico, especialmente quando se trata de crimes políticos ou vinculados à ação dos movimentos sociais. O Brasil foi recentemente condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA por não ter punido os responsáveis pelos crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar e por não localizar os restos mortais dos desaparecidos políticos. Boa parte destes desaparecidos está relacionada com a “Guerrilha do Araguaia”, ocorrida no sul do Pará, no início dos anos setenta. Mesma região onde, na atualidade, segundo o MST e a Pastoral da Terra, mais ocorrem crimes como o sofrido por Margarida. Apenas dois corpos de desaparecidos da ditadura foram localizados nesta região e, pasmem, por esforço, custo e inciativa de seus familiares, sem qualquer apoio do Estado democrático.

O quadro que se apresenta leva-nos a desejar que as revoltas no mundo árabe, na Europa e no Chile possam fazer eco no Brasil e que as Margaridas sejam o anúncio da primavera brasileira.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

4 comentários em As Margaridas e a primavera brasileira

  1. Maria Carolina // 24/08/2011 às 6:11 pm // Responder

    Excelente texto. Precisamos combater a impunidade no Brasil, seja a passada, seja a atual.

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  2. jardes antunes // 25/08/2011 às 2:55 pm // Responder

    É trágico. A resposta do governo PT/PMDB à marcha das Margaridas foi um novo ministro do mesmo corte reacionário na agricultura e a própria presidenta ( e não seria diferente do governo anterior do presidente Lula ) dizendo que não apoiaria a atualização dos índices de produtividade da década de 70. Isso não é consequência das velhas e decantadas balelas , da correlação de forças desfavoráveis , de ser um governo de coalisão , de não termos maioria no congresso , a tal da governabilidade farsesca , etc, etc, etc. Não vão levar. Como o governo do presidente Lula nós , o povo , perdemos todos os embates com os poderosos. Da mesma forma que o presidente Lula , são meros gerentes dos negócios das corporações e das grandes empresas brasileiras e o congresso seu balcão de negócios. Tem exceções , claro que tem. O que se pode ver é que parte da esquerda aderiu acriticamente esse governo e está em um mato sem cachorro. O capital está pintando e bordando enquanto os movimentos sociais estão sendo desfibrados. O que estão fazendo 27 mil cargos assumidos pelo PT na estrutura do Estado ?

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  3. amelinha teles // 25/08/2011 às 5:08 pm // Responder

    É sempre bom lembrar e cobrar a ausência de justiça social no Brasil e denunciar a perpetuação da impunidade como se nunca alcançassemos uma sociedade sem violência. Mas é necessário destacar a presença massiva das mulheres trabalhadoras ruarais e urbanas. Qual o movimento que mobiliza 80 mil mulheres em Brasilia?

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  4. Importante matéria e com uma análise da conjuntura no campo. O que pouco foi falado durante a manifestação. E o discurso do governo ignorou estes assassinatos recentes. E ontem mais um sindicalista dos agricultores foi assassinado no Pará. Até o Boechat da bandeirantes pediu justiça. Já são 6 assassinados nos últimos tres meses. A maior manifestação depois das diretas foi a Marcha das Margaridas – esperamos que a primavera refloresça e que seja um marco mais uma vez com as mulheres a frente. Como foi na anistia, nas diretas e hoje somos apenas 8,9% no congressso. A primavera florirá e milhões de margaridas vão florir.

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