Necessidade e realidade

"Moulin Rouge" por Henri Toulouse Lautrec

Por Izaías Almada.

Hoje vou dedicar este espaço a dois emblemáticos e importantes documentos: o primeiro deles, o manifesto redigido pelos trabalhadores culturais brasileiros que, há quase três semanas, tomaram parte das instalações da FUNARTE por oito dias em São Paulo, mantendo-se em vigília e chamando a atenção do governo federal e da sociedade para as suas justas reivindicações.

Em seguida, a carta do Colegiado Setorial de Teatro enviada ao presidente da FUNARTE.

A leitura desses dois documentos indica caminhos de reflexão para o que se passa na área cultural brasileira.

Já tive a oportunidade de escrever, logo após as urnas darem a vitória à presidenta Dilma Rousseff, chamando a atenção para o fato de que o Ministério da Cultura é normalmente um dos últimos a ter definido o nome de quem o comandará. O que poderia ser interpretado como sendo um cuidado especial para a escolha de alguém que reúna as melhores condições para o Ministério em questão, geralmente não o é.

O problema, que se verifica na área federal, repete-se nas esferas estaduais e nas municipais, onde as migalhas que são destinadas às respectivas Secretarias e ao próprio Ministério mal dão para cobrir as despesas dos milhares de projetos que se inscrevem. Isso para não falar no distorcido mercado de produção cultural com os incentivos fiscais, onde os interesses do chamado ‘marketing cultural’ servem de cortina de fumaça para interesses bem menos edificantes, se me permitem o eufemismo.

Mais: os documentos mostram, no meu entender, parte da necessidade de quem trabalha a arte com olhos menos gananciosos e os apoios setorizados que tentam justificar políticas públicas nem sempre em consonância com essa necessidade.   

 

Manifesto dos trabalhadores da cultura

O Movimento de Trabalhadores da Cultura, aprofundando e reafirmando as posições defendidas desde 1999, em diversos movimentos como o ‘Arte contra Barbárie’, torna pública sua indignação e recusa ao tratamento que vem sendo dado à cultura deste país. A arte é um elemento insubstituível para um país por registrar, difundir e refletir o imaginário de seu povo. Cultura é prioridade de Estado, por fundamentar o exercício crítico do ser humano na construção de uma sociedade mais justa.

A produção artística vive uma situação de estrangulamento que é resultado da mercantilização imposta à cultura e à sociedade brasileiras. O Estado prioriza o capital e os governos municipais, estaduais e federal teimam em privatizar a cultura, a saúde e a educação. É esse discurso que confunde política para a agricultura com dinheiro para o agronegócio; educação pública com transferência de recursos públicos para faculdades privadas; incentivo à cultura com Imposto de Renda doado para o marketing, servindo a propaganda de grandes corporações.

Por meio da renúncia fiscal — em leis como a Lei Rouanet —, os governos transferiram a administração de dinheiro público destinado à produção cultural, para as mãos das empresas. Dinheiro público, utilizado com critérios de interesses privados. Política que não amplia o acesso aos bens culturais e principalmente não garante a produção continuada de projetos culturais.

Em 2011 a cultura sofreu mais um ataque: um corte de 2/3 de sua verba anual. De 0,2% ou 2,2 bilhões de reais, foi para 0,06% ou 800 milhões de reais do orçamento geral da União em um momento de prosperidade da economia brasileira. Esta regressão implicou na suspensão de todos os editais federais de incentivo à Cultura no país, num processo claro de destruição das poucas conquistas da categoria. Enquanto isso, a renúncia fiscal da Lei Rouanet não sofreu qualquer alteração apesar das inúmeras críticas de toda a sociedade.

Trabalhadores da Cultura: é HORA DE PERDER A PACIÊNCIA: Exigimos dinheiro público para arte pública!

Arte pública é aquela financiada por dinheiro público, oferecida gratuitamente, acessível a amplas camadas da população — arte feita para o povo. Arte pública é aquela que oferece condições para que qualquer trabalhador possa escolhê-la como seu ofício e, escolhendo-a, possa viver dela — arte feita pelo povo.

Por uma arte pública, tanto nós, trabalhadores da cultura, como toda a população em seu direito ao acesso irrestrito aos bens culturais, exigimos programas – e não programa único – estabelecidos em leis com orçamentos próprios. Exigimos programas que estruturem uma política cultural contínua e independente – como é o caso do Prêmio Teatro Brasileiro, um modelo de lei proposto pela categoria após mais de dez anos de discussões.

Por uma arte pública exigimos Fundos de Cultura, também estabelecidos em lei, com regras e orçamentos próprios a serem obedecidos pelos governos e executados por meio de editais públicos, reelaborados constantemente com a participação da sociedade civil organizada e não dentro dos gabinetes. Por uma arte pública, exigimos a imediata aprovação da PEC 236, que prevê a cultura como direito social, e também imediata aprovação da PEC 150, que garante que o mínimo de 2% (hoje, 40 bilhões de reais) do orçamento geral da União seja destinado à Cultura, para que assim tenhamos verbas que possibilitem o início de um tratamento devido à cultura brasileira.

Por uma arte pública, exigimos a imediata publicação dos editais de incentivo cultural que foram suspensos, e o descontingenciamento imediato da já pequena verba destinada à Cultura. Por uma arte pública, exigimos o fim da política de privatizações e sucateamentos dos equipamentos culturais, o fim das leis de incentivo fiscal, o fim da burocratização dos espaços públicos e das contínuas repressões e proibições que os trabalhadores da cultura têm diariamente sofrido em sua luta pela sobrevivência.

Por uma arte pública queremos ter representatividade dentro das comissões dos editais, ter representatividade nas decisões e deliberações sobre a cultura, que estão nas mãos de produtores e dos interesses do mercado. Por uma arte pública, hoje nos dirigimos a Senhora Presidenta da República, Dilma Rousseff, ao Senhor Ministro da Fazenda e às Senhoras Ministras do Planejamento e Casa Civil, já que o Ministério da Cultura, devido ao seu baixo orçamento encontra-se moribundo e impotente.

Exigimos a criação de uma política pública e não mercantil de cultura, uma política de investimento direto do Estado, que não pode se restringir às ações e oscilações dos governos de plantão. O Movimento de Trabalhadores da Cultura chama toda a população a se unir a nós nesta luta.

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Carta do Colegiado Setorial de Teatro do Conselho Nacional de Política Cultural do MinC ao Sr. Antonio Grassi

Brasil, 01 de agosto de 2011

Ilmo. Sr. Presidente da FUNARTE Antonio Grassi

Exma. Ministra de Estado da Cultura Sra. Ana de Hollanda

Prezado Senhor,

Nós, membros representantes da sociedade civil no Colegiado Setorial de Teatro, eleitos por delegados de todos os Estados da Federação durante a Pré-Conferência Setorial e aprovados por unanimidade pela II Conferência Nacional de Cultura, recebemos com grande satisfação a notícia do lançamento de novos programas de fomento às artes brasileiras somando o montante de R$ 100 milhões de reais investidos, publicamente anunciados por V.Sa. no dia 18 de julho do ano corrente. Após o duro golpe do contingenciamento de 2/3 do orçamento do Ministério da Cultura em 2011, este fato realmente deveria nos renovar as esperanças e o fôlego para trabalhar em conjunto com a nova gestão que se inicia. Muito surpresos, porém, ficamos ao constatar que dos 100 milhões anunciados, 48 milhões eram parte do orçamento do ano passado, recursos de editais dos Fundos ProCultura já lançados pela gestão anterior e que V.Sa. divulgava publicamente como parte dos “novos” investimentos do MinC. Portanto, como representantes da sociedade civil brasileira, não podemos nos calar frente a essa inverdade e, mais ainda, solicitamos a V.Sa. uma retratação pública, uma vez que este tipo de informação ilude a população e cria uma falsa sensação de que o orçamento da Cultura continua em pleno crescimento.

Solicitamos também, conforme nossas competências atribuídas pelo Regimento Interno do Conselho Nacional de Política Cultural – CNPC em seu Artig o9º, Incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII e demais assemelhados e de acordo com o Regimento Interno do Colegiado Setorial de Teatro do CNPC, em seu Artigo3º, Incisos I,VII, X, XI e demais assemelhados, esclarecimentos acerca das contratações abaixo relacionadas, considerando:

1 – Os elevados montantes de recursos empregados nas contratações justificadas pelo expediente da inexigibilidade, para atender uma agenda centralizada em apenas uma cidade, considerando a grande demanda nacional;

2 – O tratamento diferenciado para com um único Estado Brasileiro, cujas empresas produtoras vêm sendo beneficiadas com contratações diretas pela FUNARTE, pelo expediente da inexigibilidade de concorrência e licitação, num momento em que o próprio Ministério da Cultura reconhece publicamente a inexistência de recursos para a reedição e/ou manutenção de alguns editais já estabelecidos nas mais diversas áreas de atuação da FUNARTE.

A – Contratação da ARTEDARTE PRODUCOES LTDA para produção executiva da apresentação do espetáculo para realização do evento “Leitura Dramática em Homenagem a Dulcina de Moraes”, no âmbito da programação de reabertura do Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, em 02 de agosto de 2011, no valor de R$ 40.000,00;

B – Contratação da ARTEDARTE PRODUCOES LTDA em 28 de julho de 20011, para produção executiva da apresentação do espetáculo “Bibi in Concert IV – 70 Anos de Histórias e Canções”, no âmbito da programação de reabertura do teatro Dulcina, na cidade do Rio de Janeiro no valor: R$ 320.000,00;

C – Contratação da REALEJO PRODUCOES CULTURAIS LTDA para realização da pré-produção de dez apresentações do THÉÂTRE DU SOLEIL, referentes ao espetáculo “Les Naufragés Du Fol Espoir”, na cidade do Rio de Janeiro, no valor total de R$ 500.000,00;

D – Contratação de serviço do artista e designer Ronaldo Moreira Fraga, exposição São Francisco – Um Rio Brasileiro, a realizar-se no período de 25 de outubro a 05 de dezembro do corrente ano, na Galeria Funarte – Prédio Palácio Gustavo Capanema na cidade do Rio de Janeiro no valor de R$ 800.000,00;

Soma-se ao exorbitante valor contratado acima, o fato de que a referida exposição não apresenta ineditismo, já tendo sido apresentada em outras capitais brasileiras, sendo o recurso investido em uma remontagem na cidade do Rio de Janeiro, no interior das dependências da própria FUNARTE e que o mesmo projeto, inscrito sob o PRONAC 08 9325, possui valor já captado de R$ 1.200.000,00 via lei Rouanet conforme o sistema SalicWeb do MinC.

E – Contratação da ZADIG PROMOÇÕES DE EVENTOS CULTURAIS LTDA. em 20 de julho de 2011, para pré-produção de 3 apresentações do espetáculo “Uma Flauta Mágica” no Rio de Janeiro, no valor de R$ 200.000,00.

Ao que se refere o item acima, vale acrescentar que além da quantia empenhada ser completamente desproporcional aos preços praticados no mercado para o financiamento tão somente da etapa de pré-produção de três apresentações em uma única cidade brasileira, que o mesmo proponente obteve autorização do MinC para captar recursos via renúncia fiscal, conforme informações abaixo:

11 4489 – Uma Flauta Mágica, Peter Brook / Mozart Zadig Promoções de Eventos Culturais Ltda CNPJ/CPF: 08.940.880/0001-98

Valor do Apoio R$: 517.060,00

Prazo de Captação: 28/07/2011 a 30/11/2011

Resumo do Projeto: Apresentar uma adaptação livre da ópera A Flauta Mágica de W.A. Mozart por Peter Brook, um dos mais reverenciados diretores de teatro da atualidade, no Rio de Janeiro. Serão 3 apresentações.

F – Contratação em caráter de inexigibilidade de licitação da CASA DA GAVEA em 11 de julho de 2011, para produção executiva de quatro apresentações do espetáculo teatral “Sonho de uma noite de São João”, no valor de R$ 135.000,00.

Considerando o fato de que as contratações feitas pela FUNARTE apresentam o embasamento legal no caput do artigo 25* da Lei Nº 8.666/1993 diz que a licitação “é inexigível quando há inviabilidade de competição”. No entanto, no caso da contratação artística da empresa CASA DA GÁVEA, acima mencionada, isto não ocorre, pois o objeto da contratação não é de apresentação de obra artística renomada, já criada e produzida, sendo contratada a sua apresentação. O objeto da contratação refere-se à produção executiva de 04 (quatro) apresentações do espetáculo “Sonho de Uma Noitede São João”. Ora, deveria ser explicitado se há algum vínculo de exclusividade da liberação de direito autoral da obra com a empresa contratada e se esta obra, apenas ela, atende a necessidade específica da contratação, pois de outro modo, poderia ser outro espetáculo alusivo à noite de São João, ou outro tema. Caso a contratação estivesse condicionada à prévia definição do texto, o mesmo poderia ser encenado por qualquer outra companhia ou grupo teatral do Brasil. E se a contratação não estiver subordinada à definição prévia do texto, a inexigibilidade evocada mostra-se ainda mais incoerente, pois a seleção deveria ter sido feita por meio de edital específico.

Somamos ainda a esse questionamento o fato de que o mesmo proponente possui autorização do MinC para captar recursos via renúncia fiscal, conforme informações abaixo:

11 2741 – Espetáculo Sonho de uma Noitede São João Casa da Gávea

CNPJ/CPF: 68.599.596/0001-21

Processo: 01400.007139/20-11

RJ – Rio de Janeiro

Valor do Apoio R$: 552.730,00

Prazo de Captação: 30/05/2011 a 31/12/2011

Resumo do Projeto: Remontagem do espetáculo “Sonho de uma Noite de São João”, texto de Anderson Cunha, livremente inspirado na obra de Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, direção de Paulo Betti e Anderson Cunha e grande elenco para ser realizado na Praça Santos Dumont, Gávea, Rio de Janeiro, seguindo pelas cidades de Sorocaba e Ribeirão Preto. Serão realizadas no total 08 apresentações, quatro na cidade do Rio de Janeiro, duas na cidade de Sorocaba e 02 na cidade de Ribeirão Preto.

Certos de que V.Sa. se empenhará com a maior rapidez possível para apresentar as justificativas cabíveis para os referidos empenhos de recursos diretos do orçamento da Cultura de nosso país, finalizamos nossa manifestação destacando ainda nossa total consternação com o somatório dos valores contratados, acima discriminados, que perfazem o montante de R$ 1.995.000,00 investidos em programações exclusivas para uma única cidade brasileira: o Rio de Janeiro.

Com nossas saudações democráticas,

Atenciosamente,

Colegiado Setorial de Teatro do Conselho Nacional de Política Cultural do MinC

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Necessidade e realidade

  1. Sandro Louzada // 12/08/2011 às 6:45 pm // Responder

    Muito bom, obrigado por divulgar esses documentos!

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