Crônicas de Berlim (7): Um jantar e muitas palavras

Por Flávio Aguiar.

Apesar das notícias europeias continuarem carregadas de tensão, depois do atentado em Oslo e com a continuidade intermitente da crise do euro, vamos ao famoso e esperado jantar, que ninguém é de ferro.

Chucrute, batata assim ou assada, kassler, pato com repolho roxo, defumados, salsichas regadas a cerveja, e por aí vai. É o que gente pensa quando se lembra de culinária alemã. Tudo bem. Nada contra. Mas vamos pensar em alternativas.

Perto de onde eu moro há um restaurante muito original. Chama-se “Die Feine Backerei”, “A Fina Padaria”. Mas não se fabrica pão lá, não. É que o restaurante fica no prédio onde havia uma padaria, e nos fundos a gente come diante do forno da mesma, em mesas rústicas, quase coletivas (dois grupos de pessoas podem sentar-se na mesma mesa, por exemplo), e a comida é abundante e deliciosa. A comida é da Suábia. O que é a Suábia? Como tudo nessas Europas antigas e recentes, algo muito complicado. Digamos: a principal referência da Suábia é o sul da Baviera, em território alemão. Mas seu território abrangia politicamente e abrange linguisticamente as regiões de Baden (Alemanha), o liliputiano principado de Lichtenstein (alguém lembra da Lichtensteiner Polka, tocada pelo Conjunto Farroupilha nos anos 1950/60?), a Suíça germânica e a Alsácia, hoje na França, com um raio de influência chegando a Besançon. Era a antiga Vesontio dos romanos, citada nos Comentários de Júlio César, depois Besantio, Besontion, Bisanz no Alto Alemão e afinal Besançon no moderno francês.

A mais notória contribuição cultural da Suábia (sem desmerecer as outras) foi o nome de seus primitivos habitantes germanos, os Allamanes, que deram à região o nome de Allamania – de onde derivou o nosso Alemanha e nomes semelhantes em tantas outras línguas, designando a localmente chamada Deutschland.

Mas a Suábia deu também contribuições muito originais à cozinha alemã. Claro: a relativa proximidade com a Itália não perdoou, e assim uma das principais iguarias suábias é um prato de… massas, misturado com salsichinhas, molhos e um tipo de empanadas de massa mole, cozidas, muito atraentes. Come-se com acompanhamento de um vinho branco (um Muller-Thurgau, por exemplo) da região, ou de um tinto frutado, mas não demais.

Citei o prato e o restaurante como provas da originalidade da cozinha germânica, que para nós brasileiros permanece em grande parte insuspeita. Há outras, que nos podem surpreender.

Vamos examinar, por exemplo, a cozinha alemã de exportação – para o Brasil, o que nos lembra um pouco essa cozinha de aparência ítalo/germânica da Suábia.

Para quem vem do sul do Brasil, nada mais “alemão” do que uma cuca, descrita pelo próprio Aurélio como um “bolo de origem alemã”, com farinha de trigo, ovos, manteiga, fermento, e cobertura de açúcar e ainda frequentemente de alguma fruta, como banana ou outra. A palavra, comum na colônia alemã, vem, naturalmente, de “Kuchen” (masculino), bolo ou torta, em alemão. Só que… não há cucas na Alemanha, pelo menos como as conhecemos no Brasil. Foi uma adaptação açucarada que os imigrantes alemães inventaram na “nova terra”, para nela se adaptar. Mas ficou, retroativamente, como algo alemão levado para o Brasil. Ledo engano.

O mesmo aconteceu com o italianíssimo galeto. Não há galetos na Itália. Acontece que os imigrantes italianos empobrecidos, lutando para enriquecer ou sobreviver, não dispunham de reses para churrasquear, tinham-nas no máximo, quando era o caso, para dar leite ou para arar. Então, seguindo a moda da terra, churrasqueavam nos espetos os frangos que sobravam no galinheiro, onde, ao fim e ao cabo, deveria reinar um único galo. Mas hoje o galeto passa por invenção genuína da terra de Dante, transposta para o Brasil, visto como país sempre a copiar…

Voltando à “Feine Backerei”, podemos curtir o ambiente rústico. Podemos também escolher algum barzinho na cidade, ou restaurante, onde servem alguma “boulette” (um bolo de carne parecido com um hamburgão, mas muito melhor) com salada de batata, com cerveja ou vinho, conforme o desejo. Neste caso, prefiro um vinho tinto alemão, que há dos muito bons, produzidos na região de Baden ou na de Franken, ao norte da Baviera. Ou ainda no Pfalz, região no sudoeste alemão.

Por ironia do destino, assinalo que posso comer uma boulette em casa com um vinho… brasileiro. As casas mais sofisticadas do ramo têm um pequeno, mas constante estoque de vinhos brasileiros da melhor qualidade – inclusive daqueles produzidos no vale do São Francisco, e a um preço menor do que na maioria dos supermercados e lojas especializadas do Brasil. Parece que é uma questão de impostos e também de hábitos dos consumidores. No Brasil vinho ainda é artigo de luxo e distinção de classe. Infelizmente.

Ah sim, cerveja… Esse é um capítulo à parte. Há, muitas e excelentes. Mas as melhores cervejas alemãs… são as tchecas. E ponto. Assim como os melhores chocolates suíços são os alemães. Eu não sabia dessa cultura do chocolate por aqui. E a gente presenteia no Natal – claro, é o que, nas estações, termina mais ou menos correspondendo ao tempo da nossa Páscoa. Nesta, presenteiam-se ovos duros coloridos, ao invés de chocolates.

Para terminar, recomendo um schnaps (trigo velho para os gaúchos, steinhaeger para os demais) rebatendo a janta e a cerveja.

Saúde!

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Crônicas de Berlim (7): Um jantar e muitas palavras

  1. neusa maria neves da costa // 07/02/2012 às 5:09 pm // Responder

    adorei “cronicas de Berlim”, até porque viajo todos os anos para esta cidade contemporanea, e identifiquei algum itens: comida e vinho.

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