Ecossocialismo: espiritualidade e sustentabilidade II

Por Michael Löwy e Frei Betto.

A crise ecológica atual, crise de civilização*

A crise ecológica atual,  a catástrofe que se avizinha: o aquecimento global  (ML)

A crise ecológica planetária, que é uma crise de civilização, tem no fenômeno do aquecimento global sua expressão mais ameaçadora. Resultado da acumulação de gases a efeito de estufa (sobretudo o gás carbônico) emitidos pelos combustíveis fósseis (petróleo, carvão) na atmosfera, o processo de mudança climática é um desafio sem precedentes na história da humanidade. O que acontecerá se a temperatura do planeta subir mais do que 2 graus? Os riscos são conhecidos, graças ao trabalhos do GIEC (Grupo Intergovernamental de Estudo do Clima): subida do nível do mar, com perigo de inundação das cidades marítimas, desde Dacca em Bangladesh, até Belém do Pará, passando por Nova York. Desertificação das terras em uma escala gigantesca: o deserto do Saara poderia chegar até Roma. Falta de água potável. Catástrofes “naturais” – furacões, inundações – em série. O que acontecerá se o gás metano, altamente explosivo, estocado nas profundezas dos oceanos, for liberado na atmosfera pela subida da temperatura dos mares? Poderíamos seguir com a lista. A partir de que temperatura – 4,  5 ou 6 graus – a Terra deixaria de ser habitável por nossa espécie? Infelizmente, não dispomos, no momento, de um planeta de recâmbio no Universo conhecido dos astrônomos… Existe um projeto secreto no Pentágono: caso nosso planeta se torne inviável, uma nave especial levará representantes da elite – banqueiros, políticos,  militares – até o planeta Marte. Não estamos convidados a esta viagem…     

O que é altamente preocupante é que este processo de mudança climática está se dando muito mais rapidamente do que previsto. A acumulação de gás carbônico, o aumento da temperatura, o derretimento dos gelos polares e das “neves eternas” das montanhas, as secas,  as inundações: tudo se precipita, e os balanços dos cientistas, mal seca a tinta dos documentos, se revelam demasiado otimistas. Já não se fala do que acontecerá no fim do século, mas do que nos espera nos dez, vinte, trinta próximos anos.

Como se coloca a questão no Brasil, e em particular na Amazônia, o mais importante “poço de carbono” – capaz de absorver parte dos gases carbônicos emitidos – do planeta? A demissão de Marina Silva é um resumo dramático da situação do meio ambiente no país, depois de décadas de políticas neoliberais – no caso dos governos Collor e Fernando Henrique – ou social-liberais, como é o caso do atual governo Lula. Apesar das tentativas da Ministra do Meio Ambiente, e de alguns avanços parciais – delimitação de terras indígenas ou de áreas de preservação – no fundamental o que se observou foi uma continuidade do modelo econômico, favorecendo o agronegócio e as grandes multinacionais. 

A expansão ilimitada da grande produção agrícola capitalista destinada à exportação – as famosas commodities: soja, gado, milho transgênico, celulose, açúcar, etanol, madeiras nobres – têm, como resultado, a devastação crescente da floresta brasileira em geral, e da Amazônia em particular. As cifras de desmatamento, em crescimento exponencial, ilustram dramaticamente este processo de destruição. A ONG ambientalista Greenpeace constata que 18% da floresta amazônica já foi destruída: quando chegarmos a 40% já será tarde demais…

Quem é responsável por esta crise, do catastrófico processo de aquecimento global, por esta ameaça planetária sem precedentes? É o ser humano, nos respondem os cientistas: não se trata de uma evolução “normal” do clima,  mas do produto da atividade humana. A resposta – até hoje negada por “cientistas” mercenários, ligados à administraçâo Bush ou às multinacionais do petróleo – é justa, mas um pouco curta: seres humanos vivem sobre a Terra há milênios, mas a concentração do gás carbônico só se tornou um perigo nas últimas décadas. Na verdade, a responsabilidade do processo cabe ao sistema capitalista mundial, um sistema intrinsecamente insustentável.  

As raízes da crise:  uma civilização – a do capitalismo ocidental – baseada no consumismo, no fetichismo da mercadoria, na acumulação ilimitada do lucro, e na ostentação da riqueza pelas elites  (FB)

Ao priorizar a acumulação do capital em detrimento dos direitos humanos e do equilíbrio ecológico, o capitalismo instaura, no planeta, uma brutal desigualdade social, além de promover a devastação ambiental. Hoje, 80% da produção industrial do mundo são absorvidos por apenas 20% da população, que vivem nos países ricos do hemisfério Norte. Os EUA, que abrigam apenas 5% da população mundial, consomem 30% dos recursos do planeta!

O padrão de consumo da sociedade capitalista é insustentavel e tem um papel decisivo no processo de mudança climática. Uma boa parte deste consumo é reservado às práticas ostentatórias de uma pequena oligarquia. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a soma da renda das 500 pessoas mais ricas do mundo supera a de 416 milhões mais pobres. Um multimilionário ganha mais do que 1 milhão de pessoas!

De acordo com a revista Forbes, que se dedica a radiografar os donos do mundo, essa gente costuma pagar US$ 160 mil por um casaco de pele russo; US$ 3.480 por 12 camisas da loja londrina Turnbull & Asser; ou US$ 241 mil numa única noite num cabaré de striptease, como fez Robert McCormick, presidente da Savvis, empresa que monitora os computadores da bolsa de Nova York. Pode-se também pagar pelo carro mais caro do mundo, o Bentley 728, US$ 1,2 milhão.

Os muros dos campos de concentração da renda são altos demais para permitir a entrada da multidão de excluídos. Mas são demasiadamente frágeis para impedir o risco de implosão. Há que buscar uma alternativa ao atual modelo de civilização. E esta alternativa passa, necessariamente, por mudança de valores, e não apenas de mecanismos econômicos.

Se o mundo roda em torno da economia e a economia gira em torno do mercado, isso significa que este, revestido de caráter idolátrico, paira acima dos direitos das pessoas e dos recursos da Terra. Apresenta-se como um bem absoluto. Decide a vida e a morte da natureza e da humanidade . Assim, os fins – defesa da vida no nosso planeta, promoção da felicidade humana – ficam subordinados à acumulação privada das riquezas. Não importa que a riqueza de uns poucos signifique a pobreza de muitos. O paradigma do mercado são os cifrões de contas bancárias e não a dignidade das pessoas.

O princípio supremo da cidadania mundial é o direito de todos à vida e, como enfatiza Jesus, “vida em plenitude” (João 10, 10). Como tornar isso viável? Qualquer alternativa deverá fugir dos extremos que penalizaram parcela significativa da humanidade no século XX: o livre mercado e a planificação burocrática centralizada. Nem um nem outro subordina a economia aos direitos do cidadão. O mercado afunila oportunidades, concentrando a riqueza em mãos de poucos. A planificação burocrática, embora exercida em nome do povo, de fato o exclui das decisões. O mercado agrava o estado de injustiça. A planificação burocrática restringe o exercício da liberdade. Ambos são incompatíveis com o meio ambiente e conduzem ao dramático processo atual de aquecimento global.

Para superar estes impasses, urge que a lógica econômica abandone o paradigma da acumulação privada para recuperar o do bem comum e do respeito à natureza, de modo que a cidadania se sobreponha ao consumismo e os direitos sociais da maioria aos privilégios ostentatórios da minoria.

O Fórum Social Mundial é uma luz que se acende no fim do túnel, resgatando a esperança de tantos militantes da utopia, que lutam contra um sistema que imprime ao pão valor de troca, como mercadoria, e não valor de uso, como bem indispensável à nossa sobrevivência.  

Repensar o socialismo supõe não identificá-lo com o regime derrubado pelo Muro de Berlim, assim como a história da Igreja não se resume à Inquisição. Se somos cristãos, é porque o Evangelho de Jesus encerra determinados valores, como a natureza sagrada de toda pessoa, que servem inclusive de juízo condenatório ao que representou a Inquisição.

Uma proposta alternativa de sociedade deve partir de práticas concretas, nas quais economia política e ecologia se coadunam. Uma das razões da brutal desigualdade social imperante no Brasil (75,4% da riqueza nacional em mãos de apenas 10% da população, segundo dado do Ipea, maio de 2008) é a esquizofrenia neoliberal que divorciou a economia da política, e a política do social e do ecológico. O caráter emancipatório do Fome Zero, proposto em 2003, foi substituído pelo caráter compensatório do Bolsa Família, a partir de 2004. Assim, as famílias que, num prazo de dois anos, deveriam sair da miséria por se tornarem capazes de produzir a própria renda, passaram à dependência da União, inclusive do ponto de vista eleitoral, e agora adquirem alimentos, remédios, eletrodomésticos… mas não o essencial: terra para cultivarem.

A consolidação da democracia e a defesa dos ecossistemas no nosso país e no mundo dependem, agora, da capacidade de se enfrentar a questão prioritária: erradicar as desigualdades sociais.

As “mercantis”: a Bolsa de direitos de emissão (ML)

Como a oligarquia dominante está enfrentando os problemas ecológicos e em particular a questão do aquecimento global? A resposta do maior poluídor e emissor de gás carbônico do planeta, os Estados Unidos sob a administração de George W. Bush, é de cruzar os braços: “business as usual”, nenhuma medida obrigatória de redução, posto que “o american way of life não é negociável” (Bush dixit). O discurso consensual dos porta-vozes do sistema é o “desenvolvimento sustentável”, termo utilizado pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelos  governos do G-8. Infelizmente é uma fórmula sem conteúdo, aquilo que os escolásticos da Idade Média chamavam de flatus vocis, um palavreado vazio; se trata na realidade de uma mera concessão terminológica a uma opinião pública cada vez mais preocupada com a questão ecológica. 

Os setores ecologicamente mais avançados do capital internacional, a elite dominante europeia e japonesa, chegaram a um acordo para encarar o problema do efeito estufa: o chamado Protocolo de Kyoto – que os Estados Unidos recusaram assinar. O Protocolo busca, supostamente, reduzir o efeito estufa dentro de 20 ou 30 anos, com base num mecanismo absurdo, típico do capitalismo neoliberal, chamado “mercado dos direitos de emissão”. Os países mais ricos seguem poluindo o mundo e emitindo gás carbônico, baseados na possibilidade de comprar dos países pobres os direitos de emissão que eles não utilizam. Transformam o direito de poluir em mercadoria que se compra na bolsa de valores! Deste modo, as nações industriais avançadas continuam emitindo os gases com efeito estufa desde que estejam dispostas a pagar. Isso é o mais avançado que a elite capitalista conseguiu produzir. As metas de redução até 2010, já de si muito reduzidas – ínfimas do ponto de vista do que seria necessário segundo os cientistas do GIEC – não foram atingidas, confirmando assim que a tal  “Bolsa de direitos de emissão” não tem nenhuma eficácia.

As pretensas soluções tecnológicas. Exemplo: o etanol (FB)

Segundo o argumento oficial, os biocombustíveis seriam uma resposta ao problema do aquecimento global,  substituindo a gasolina, grande responsável dos gases de efeito de estufa. Na verdade,  considerando as emissões de gases que resultam da produção – fertilizantes, maquinário agrícola, usinas – e transporte dos biocombustíveis, a diferença com o petróleo não é muito grande. Se trata portanto de uma falsa solução,  com dramáticas consequências sociais.

O prefixo grego bio significa vida; necro, morte. O combustível extraído de plantas traz vida? No meu tempo de escola primária, a história do Brasil se dividia em ciclos: pau-brasil, ouro, cana, café etc. A classificação não é de todo insensata. Agora estamos em pleno ciclo dos agrocombustíveis, incorretamente chamados de biocombustíveis.  

Este novo ciclo provoca o acelerado aumento do preço dos alimentos. Estudo da OCDE e da FAO, indica que “os biocombustíveis terão forte impacto na agricultura entre 2007 e 2016”. Os preços agrícolas estão acima da média dos últimos dez anos. Os grãos já custam de 20 a 50% mais. No Brasil, a população pagou três vezes mais pelos alimentos no ano passado, se comparado a 2007.

Vamos alimentar carros e desnutrir pessoas. Há 800 milhões de veículos automotores no mundo. O mesmo número de pessoas sobrevive em desnutrição crônica. O que inquieta é que nenhum dos governos entusiasmados com os agrocombustíveis questiona o modelo de sociedade que prioriza o transporte individual – um dos grandes responsáveis pelo gases que produzem o aquecimento global como se os lucros da indústria automobilística fossem intocáveis.

Os preços dos alimentos sobem em ritmo acelerado na Europa, na China, na Índia e nos EUA. O etanol made in USA, produzido a partir do milho, fez dobrar o preço deste grão em um ano.  Como hoje quem manda é o mercado, acontece nos EUA o que se reproduz no Brasil com a cana: os produtores de soja, algodão e outros bens agrícolas abandonam seus cultivos tradicionais pelo novo “ouro” agrícola: o milho lá, a cana aqui. Isso repercute nos preços da soja, do algodão e de toda a cadeia alimentar, considerando que os EUA são responsáveis por metade da exportação mundial de grãos.

A desnutrição ameaça, hoje, 52,4 milhões de latino-americanos e caribenhos, 10% da população do Continente. Com a expansão das áreas de cultivo voltadas à produção de etanol, corre-se o risco dele se transformar, de fato, em necrocombustível – predador de vidas humanas.

No Brasil, a expansão dos canaviais no Sudeste empurra a produção de soja Amazônia adentro, provocando o desmatamento de uma região que já perdeu, em área florestal, o equivalente ao território de 14 estados de Alagoas. Entre 1990 e 2006, a área de cultivo de soja na Amazônia se expandiu ao ritmo médio de 18% ao ano. O  rebanho se multiplicou 11% ao ano.

Os satélites do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) detectaram, entre agosto e  dezembro de 2007, a derrubada de 3.235 km2 de floresta. É importante salientar que os satélites não contabilizam queimadas, apenas o corte raso de árvores. Portanto, nem dá para pôr a culpa na prolongada estiagem do segundo semestre  de 2007.

Como os satélites só captam cerca de 40% da área devastada, o próprio governo estima que 7.000 km2 tenham sido desmatados. Mato Grosso é responsável por 53,7% do estrago; o Pará, por 17,8%; e Rondônia, por 16%. Do total de emissões de carbono do Brasil, 70% resultam de queimadas na Amazônia.

Até 2030, o Brasil corre o risco de perder 21% de sua cobertura florestal, segundo dados da Universidade Federal de Minas Gerais e do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia. Se o ritmo atual de desmatamento prosseguir, desaparecerão do mapa 670 mil km2 de floresta, área que comporta 22 Bélgicas! Haverá perda inestimável da biodiversidade e aumentará o aquecimento global, com consequências dramáticas para toda a humanidade.   

A produção de cana no Brasil é historicamente conhecida pela superexploração do trabalho, destruição do meio ambiente e apropriação indevida de recursos públicos. As usinas se caracterizam pela concentração de terras para o monocultivo voltado à exportação. Utilizam em geral mão-de-obra migrante – os bóias-frias -, sem direitos trabalhistas regulamentados. Os trabalhadores são (mal) remunerados pela quantidade de cana cortada, e não pelo número de horas trabalhadas. E ainda assim não têm controle sobre a pesagem do que produzem.

O entusiasmo pelo etanol faz com que usineiros alagoanos e paulistas disputem, palmo a palmo, cada pedaço de terra do Triângulo Mineiro. Em menos de quatro anos, 300 mil hectares de cana foram plantados em antigas áreas de pastagens e de agricultura.

O governo brasileiro, antes de transformar o país num imenso canavial e sonhar com a energia atômica, deveria priorizar fontes de energia alternativa abundantes no Brasil, como hidráulica, solar e eólica. E cuidar de alimentar os sofridos famintos, antes de enriquecer os “heroicos” usineiros.

Texto escrito em 2009 para apresentação no Fórum Social Mundial.

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Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009) e organizador de Revoluções (2009),  dentre outras publicações. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1944. Frade dominicano e escritor, autor de 51 livros editados no Brasil e no exterior, estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia. Desde 2007, é membro do Conselho Consultivo da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, além de ser sócio fundador do Programa Educação para Todos. Com seu livro de memórias Batismo de Sangue (Rocco), recebeu o Prêmio Jabuti em 1982. Pela Boitempo, publicou Contraversões: Civilização ou barbárie na virada do século, em coautoria com Emir Sader. Também foi condecorado com o Prêmio de Direitos Humanos da Fundação Bruno Kreisky (1987), em Viena, e com a Medalha Chico Mendes de Resistência (1988), concedida pelo Grupo Tortura Nunca Mais por sua luta em prol dos direitos humanos. Colabora especialmente para o Blog da Boitempo com esta série de artigos em parceria com Michael Löwy.

2 comentários em Ecossocialismo: espiritualidade e sustentabilidade II

  1. Citar a biblia é um erro. É um livro que endossa escravidão, assassinio de crianças, tortura eterna e sacrifício humano.

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  2. Tambem acho Sérigio…conheço pouco sobre “cristianismo libertario”. Mas tenho impressão que trata-se de um “versão” particular da bíblia, pela pura necessidade de acreditar… por exemplo:
    “Pra mim, Deus não é homofobico, então vou cirar toda uma teoria, uma releitura pra convençer as pessoas de que a igreja esta interpretando mal os escritos…”
    Por enquanto, a única versão OFICIAL que conheço de Deus e Jesus, é esse do Bolsonaro, do Silas Malafaia e de tantos outros fascistas de plantão…

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