Não sorria nunca de um preconceito

Por Urariano Mota.

Se alguém algum dia disser que Karl Marx roubou o socialismo dos nazistas,  creio que diante de tamanho absurdo a maioria de nós não conseguiria conter um sorriso, ou mesmo a mais ruidosa gargalhada. E se esse mesmo alguém dissesse que haveria uma escala, uma hierarquia entre as raças, de tal modo que lá num pódio de muitos níveis, em primeiríssimo lugar estivesse a raça, vale dizer, a ariana, e lá no fim, no último dos últimos, estivessem os ciganos, os negros e os judeus, creio que talvez olhássemos o profundo ignorante à procura de um sinal de loucura. Antes, é claro, da mais estrepitosa risada.

No entanto, os motivos cômicos logo sofreriam um abalo se um mais avisado passasse perto de nós e lembrasse que tais “piadas” foram ditas por Hitler e pelos nazistas. Ah, diante da lembrança do genocídio, do sofrimento e infâmia que tais cômicos impuseram ao mundo, toda a sua sangrenta palhaçada deixaria de ser motivo de riso. Pois o cômico, assim como a felicidade, a raiva, o amor, o ódio, toda manifestação legítima de humanidade,  sempre se dá em um contexto de vidas e significados. E deles, um dos que merecem mais cuidado e atenção talvez seja o do preconceito, por mais cômico, absurdo e de irresistível comicidade pareça. Pois as caveiras também mostram os dentes, mas nunca são dignas de um sorriso.      

Essas curtas reflexões nos vêm quando lemos as notícias do terrorista de extrema-direita na Noruega. Notem que ele, ou melhor, eles, porque o bravo rapaz não agiu só nem é uma exceção de loucura em um mar de sanidade, notem que à sua maneira ele atualiza – se é possível atualizá-las, em vez de retirá-las das tumbas – as idéias nazistas. Excertos de um dos seus comunicados dizem: 

“Nós, a livre população nativa da Europa, por este meio declaramos uma guerra preventiva contra todas as elites marxistas/multiculturalistas da Europa Ocidental… Sabemos quem vocês são, onde moram e vamos atrás de vocês. Estamos no processo de apontar cada traidor multiculturalista na Europa Ocidental. Vocês serão punidos por cada ato de traição contra a Europa e os europeus. Com o objetivo de romper com sucesso a censura da mídia marxista/multiculturalista, somos forçados a empregar operações mais brutais e de tirar o fôlego, que resultarão em baixas.”

Qual de nós, se visse essas linhas em um texto ou em um vídeo, as acharia dignas de uma resposta fundada, fundamentada e, mais que isso, responderia a elas com as armas da razão e da artilharia para a defesa dos seus efeitos? Poucos, nenhum, ninguém, a julgar pelas medidas e reações tomadas quando o criminoso as tornou públicas na web. E vem muito ao caso dizer que tais “ideias” na Noruega, na Europa hoje, e até no Brasil, com a devida tradução, não são incomuns nem, pior, expressam uma louca exceção. Há um certo tempo aqui e ali na Noruega, Inglaterra, e outros mais puros, olhares atravessados e comentários resmungados falam algo parecido dos imigrantes não-brancos. Mas uma coisa é um olhar, dizemo-nos, uma coisa é um murmúrio, completamos, outra bem distinta é um massacre com bala dundum. Dessa vez, contra seus iguais em raça, porque estavam maculados pelo pensamento de aceitação para os diferentes.           

No comunicado antes dos crimes o porta-voz dos seus iguais à direita falou as mais velhas piadas, que não mereciam o mínimo esforço para uma rápida contestação. Aquela coisa antiga, de raça, “população nativa da Europa”… mas que raça pura?, nos perguntávamos. Risos, com muitos risos respondíamos. Aquela coisa absurda de “elites marxistas/multiculturalistas da Europa Ocidental”. Putz, que é que é isso? Elite marxista, paradoxo, e multicultural, como se o mundo não fosse em si uma multicultura. Quá-quá-quá, esse cara é um humorista. E este “sabemos quem vocês são, onde moram e vamos atrás de vocês. Estamos no processo de apontar cada traidor multiculturalista na Europa Ocidental. Vocês serão punidos por cada ato de traição contra a Europa e os europeus”? Por favor, pelamordedeus, esse viking era um novo Hagar, o horrível.

E no entanto, vimos depois que o piadista devia ter sido tomado a sério e recebido de volta contra ele e assemelhados uma luta encarniçada, sem quartel, sem hora nem descanso. De todas as maneiras, modos e pensamentos, pela escrita, pelo verbo, por atos e ações. Alerta. Se continuarmos a julgar como uma piada os mais bobos preconceitos contra sexos, raças, em resumo, contra gente, depois não seremos dignos sequer de pena. A nova e profunda depressão econômica, que não se aproxima lá, pois já começou, deveria redobrar a nossa atenção e cuidado. Uma primeira providência, de um ponto de vista intelectual, creio, seria não sorrir nunca mais de todo, do mais ridículo e risível, preconceito. Pois preconceitos são muito graves. Eles sempre matam pessoas. 

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

4 comentários em Não sorria nunca de um preconceito

  1. Sempre vi o humor, na maioria das vezes, como a expressão máxima do que existe de pior e mais cruel nas pessoas, na humanidade. Ele consegue ser impessoal, inquestionável, um soberano que não podemos contestar nem quando estamos corretos, e ele completamente errado. O humorista é um Deus dos agnósticos, dos cristãos, dos judeus, dos progressistas, dos direitistas, dos comunistas e do padeiro.
    Pelas piadinhas inocentes Joãozinho sabe desde pequeno que os negros, os gays, os judeus, os portugueses, os nordestinos, as mulheres, os estrangeiros e muitos mais não são pessoas como ele e que possuem todos nomes e vidas como ele; são sim, coisas diferentes dele. Piores que ele e que merecem seu desprezo nas piadas.

    O humorista reafirma nossos mais horríveis erros é nos faz enxergar somente o dos alheios. Ele nós faz achar que somos forte ao fazer o outro ridículo ou fraco, ele nos faz ricos ao fazer o outro mais pobre e miserável. Com as risadas podemos facilmente esconder nossa riqueza obtida da pobreza e com o logro como algo normal e divertido, e ao mesmo tempo, podemos ser marginais que roubam e matam o primeiro que aparece pela frente, e logo em seguida sair rindo.

    Através do humorista estupramos nossas namoradas, amigas e esposas porque pela piada somos e podemos tudo quando homens, afinal quem pode imaginar que piadas ingênuas fizeram tanto mal a tantas pessoas por serem sexualmente engraçadas? No humor a ingenuidade se passa por malícia para nos obrigar a rir daquilo que é cruel. Nossos familiares e amigos nos obrigam a compartilhar sordidamente na risada tudo de ruim da humanidade, compartilhar com total cumplicidade as suas hipocrisias. No humor matamos e torturamos animais, humilhamos conhecidos e desconhecidos, arrancamos os dentes das sogras, espancamos nos próprios filhos e espalhamos flagelos por todos os cantos por míseras risadas.

    No Brasil nascemos todos humoristas; um excelente professor ou até mesmo um bom médico, não teriam como competir com essa carreira e não valem um vigésimo de um humorista. Não somente em termos de gasto anual, mas em termos de reconhecimento e valor social. A televisão é coberta de humoristas, cada vez mais exagerados e numerosos: sua profissão é obrigar os espectadores a rir bastante para que não reparem como suas vidas são vazias, sem sentido. As empresas estão cheias de humoristas de corredor solitários e de piadas grotescas; nas fábricas eles aparecem a qualquer momento sorrindo para humilhar alguém. Nas universidades é comum ver que quanto mais se estuda mais refinada se torna a arte da crueldade do humorista.

    Mas não se preocupem, amanhã eu estarei com todos vocês e juntos estaremos rindo de suas piadas e das minhas. Se o mal é inevitável, vamos rir dele, certo? So não me obriguem a ficar mais perto

    (Tentei fazer um texto muito sério mas com um pouco de poesia nas entrelinhas. Porém, saiu essa porcaria dura, longa e cruel como as piadas que eu tenho ouvido sobre o Chile, sobre a Noruega e sobre suicídios…)

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  2. O preconceito inicia-se com uma piada e acaba com uma tragédia.

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  3. Suely Farah // 02/08/2011 às 8:24 pm // Responder

    Juntando o que acabo de ler com o último artigo do Zizek, e lembrando os comentários idiotas que li na internet sobre a notícia da mulher que telefonou para a polícia pra dizer que a polícia estava matando no cemitério, acho que estamos coletivamente muito burros e bárbaros, e isso tudo não tem mesmo a menor graça, Urariano.

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  4. Vc tem razão na analise do humor(geralmente este humor se presta a critica dos mais fragilizados,das minorias)o humor critico aos poderosos ,não se faz!Humor devria ser uma crítica aos costumes hipocritas e não reforçar os preconceitos de uma sociedade.caso notório são certos e famigerados humoristas que adoram a palvras politicamente incorreta para ofender.Perderam a inteligencia(falam escatologicamentefeito crianças que ainda estão na fase do palavreado escatologico.Perdram a educaçao e o senso de respeito humano com piadas torpes contra a mulher,gays,negros,nordestinos,pobrs.Se julgam inteligentes,espertos,mas são palhaços grosseiros que copiam humores de modelos estrangero,numa total decadencia e mais…sem talento(quem copia é um sem telento.)Estes caras que andam até respondendo processo,não temem o grotesco,cruel,vulgar;e dizem que a plbe é que tem a boca suja,asim como a cabeça.Estyes caras(estudados)brancos,da elite,se dizem(???!!!)heteros,,,(mal resolvidos?)abusam do pior e da falta de inteligencia.Se a gente por neles um bigodinho não será para se parecer com Chaplin,este tinha um humor critico,inteligente,politizado;mas..estes terão a mente alem da cara de um humor cruel a lá Hitler. Este humor vulgar,cruel reflete a desgraça da alma humana.

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