O encontro do sapo Gonzalo com Butch Cassidy

Por Luiz Bernardo Pericás.

Era o quinto copo de Guiness que tomava aquela noite. Não sabia há quanto tempo estava sentado naquele banco de madeira, diante do balcão, no Finnegan’s Pub, nem quanto tempo mais ficaria ali. O que mais o incomodava naquele momento, na verdade, era não poder fumar. Como sempre. 

Lembrava-se que no começo dos anos noventa, nos Estados Unidos, queriam retirar “digitalmente”, por meio de programas de computador, os cigarros até dos clássicos do cinema. Não haviam chegado a tanto. Mas Gonzalo ficara sabendo que em Nova Iorque, nos dias de hoje, as autoridades locais estavam proibindo que se fumasse também nos parques e praças da cidade. Ao ar livre! Era muito para ele…

Lá, na fronteira norte do Rio Grande, não haviam censurado os cigarros nos filmes hollywoodianos. Mas, acreditem, isso havia sido feito na Turquia. Pois até fotos históricas, emblemáticas, de Mustafá Kemal, o “pai” da Turquia moderna, com um cigarro entre os dedos, haviam sido modificadas. Os censores politicamente corretos dos governos recentes simplesmente apagaram eletronicamente o palheiro que Atatürk, um fumante inveterado, segurava! E eles vão ainda mais longe… Na televisão, todos os tabacos são cobertos com uma mancha esbranquiçada ou uma flor. Imaginem Clark Gable ou Humphrey Bogart segurando uma margarida no lugar dos Chesterfields ou Marlboros. Pois é isso que acontece. A bellis perennis estilizada acompanha surrealisticamente os movimentos das mãos e das bocas dos personagens, sempre que estão fumando ao longo das histórias! O cúmulo do exagero. 

O sapo argentino sentia falta da nicotina no organismo e tentava compensar bebendo. Deu mais um gole na cerveja escura. Estava entediado, o olhar perdido, a mente em algum lugar distante. Pensou seriamente em partir assim que terminasse o pint que acabara de ser colocado a sua frente. Até que alguém sentou-se a seu lado. 

“Howdy”, disse amistosamente o forasteiro. 

Gonzalo, retirado subitamente do seu torpor, não queria conversa, mas assentiu com a cabeça. O senhor grisalho de chapéu de caubói, que chegara naquele momento, pediu uma dose de uísque. 

“Muito prazer…”, insistiu o estranho, esticando a mão para cumprimentar o sapo. 

Silêncio. 

“Meu nome é Butch Cassidy”. 

“Carajo!”, pensou o anuro, arregalando os olhos e dando um pulo no próprio assento, como se tivesse uma mola de propulsão no traseiro. Parecia até o amigo Condorito, que sempre terminava suas histórias com as pernas no ar, de costas no chão. 

“Você está me dizendo que é Butch Cassidy?! O ‘verdadeiro’ Butch Cassidy?!”

“Sim, o próprio, o primeiro e único, a seu dispor”. 

“Mas você e o Sundance Kid… aquele tiroteio na Bolívia…”

Butch, dando uma risada, tranquilizou Gonzalo:

“Não, não, isso é só parte da lenda. Aqueles dois assaltantes, na ocasião, eram uns pobres coitados. Levaram tantas balas dos bolivianos que ficaram parecendo peneiras. Mas nós já estávamos longe. E acabamos comprando um rancho em Nevada. Moramos lá até hoje. Sundance e eu cuidamos de nossos sítios. De vez em quando eu até visitava minha família em Utah. Como vê, Sundance e eu estamos vivos e gozando de ótima saúde!”

Bateu duas vezes com a mão esquerda no bíceps flexionado do braço direito. E, com um sorriso de orelha a orelha, virou o shot de bourbon de uma só vez pela goela. 

Olhem só! Então Butch Cassidy e o Sundance Kid, vivos! O sapo mal podia acreditar. 

“Meu nome é Gonzalo.  A seu dispor…”

O estrangeiro, então, falou:    

“Veja ali, do outro lado da barra”, apontou Butch. 

Era Ned Kelly, o maior fora-da-lei australiano, com sua armadura completa de metal reforçado. Parecia o homem de lata, do Mágico de Oz. Tirou o capacete e pediu uma cerveja bem gelada, mas depois do primeiro gole (que sujou sua barba desgrenhada com uma espessa espuma amarelada), percebeu que estava morna. Afrouxou a corda da forca, em volta de seu pescoço. Desanimado, apenas comentou consigo mesmo, meneando a cabeça: “Such is life”. 

O batráquio cor-de-esmeralda estava de boca aberta. Na outra extremidade do balcão, Billy the Kid, Dillinger e Meneghetti (este um exímio larápio da República do Repolho, o gato dos telhados), batiam um papo animado. 

“Aqui só tem bandidos!”, exclamou Gonzalo, assustado. 

“São todos poetas”, retrucou Butch. 

“Mas…”

“Olhe em volta daquela mesa, por exemplo”, indicou o famoso ladrão de bancos. 

Era o escritor e pugilista Arthur Cravan, com seus quase dois metros de altura e 105 quilos, conversando com Benjamin Peret, Philipe Soupault e René Crevel. 

“Dizem que Cravan desapareceu misteriosamente no México em 1918, aos 31 anos de idade, quando partia em viagem para Buenos Aires, e nunca mais foi visto… Pensei que ele tinha…”

“Pois ele está vivo, my friend”. 

“Só falta você me dizer que Elvis, Jim Morrison e John Lennon também…”

“Mas é claro! Estão no segundo andar aqui do pub!” 

Gonzalo já não entendia mais nada. Desconcertado, o batráquio insistia:

“Eu não compreendo… Bandidos e poetas…” 

“Não, comrade, são todos poetas…”

O anfíbio achava que estava alucinando. Com as mãos trêmulas, pegou o copo e bebeu todo o seu conteúdo. Pediu ao bartender mais um pint da cerveja irlandesa. 

Cravan, que por um tempo editara a revista Maintenant (da qual era editor e único colaborador), que dizia ser cidadão de vinte países e que se tornara campeão de boxe da França sem ter dado um único soco que fosse, sempre exuberante, falando alto, gesticulando muito e já um pouco embriagado, contava como havia sido sua luta histórica com Jack Johnson na Espanha. Alguém havia inventado a história de que ele era campeão europeu de boxe; tudo balela. Mas vinha bem a calhar. Afinal de contas, precisava de dinheiro. Aquele combate podia resolver temporariamente seus problemas financeiros e garantir sua viagem de navio para Nova Iorque. Com as luvas recebidas após o confronto (o vencedor ganharia 50.000 pesetas), teria condições de seguir viagem para os Estados Unidos. Assim, no dia 23 de abril de 1916, a partir das três horas da tarde, começaria o grande evento na Plaza de Toros Monumental, em Barcelona, com seis lutas programadas, das quais a de Cravan seria a principal. Seu adversário era ninguém menos que o ex-campeão mundial! E olha que o poeta aguentou até o sexto assalto! Mas foi nocauteado. De qualquer forma, tratava-se de Jack Johnson, “o gigante de Galveston”, o maior bouxeur de sua época, ora bolas! Há que se dar um desconto. Johnson havia perdido o título no ano anterior para Jess Willard, em Havana. Nunca recuperou o cinturão. Mas continuava o grande lutador de sempre. Logo depois da vitória contra Cravan, o prize fighter texano, muito bem fisicamente e ainda cheio de energia, faria uma exibição naquela arena, com Kid Johnson e seu sobrinho Gus Rhodes, que havia lutado quatro rounds antes do evento principal! Jack Johnson era mesmo o maior! 

Cravan gargalhava, lembrando-se do episódio. Depois narrou sua vida em Berlim, Paris, Barcelona e Nova Iorque.  Na Cidade Luz, suas conferências eram um  espetáculo. Certa vez, virou uma garrafa de absinto, insultou os espectadores e deu tiros para o teto. Em outra ocasião, ao terminar a palestra, arriou as calças e mostrou o traseiro para o público. Ainda houve um dia em que vendeu frutas podres na entrada do salão, para que a audiência pudesse jogá-las nele, se não estivesse gostando da performance. Uma apresentação que revoltou as pessoas, contudo, foi quando ele havia prometido que iria se suicidar diante dos assistentes, mas não o fez. De qualquer forma, como o próprio Cravan comentara, muito tempo antes, “o mundo sempre explorou o artista, agora é hora de o artista explorar o mundo!”

Em Nova Iorque, sempre com pouco dinheiro no bolso, bebia em espeluncas do Bronx, dormia no Central Park, visitava o Museu de História Natural e escandalizava os frequentadores do Greenwich Village. Naquela cidade, certa vez, depois de uma luta de boxe, surpreendeu o público ao proferir, logo em seguida, uma palestra sobre Oscar Wilde, seu tio. Pois ali, no Finnegan’s Pub, Cravan falou de tudo isso e também contou como abriu uma academia de boxe no México, a Escuela de Cultura Fisica; como utilizava vários documentos e passaportes falsos; como era seu relacionamento com as mulheres, principalmente Mina Loy, seu grande amor…

Peret, Soupault e Crevel escutavam, vez por outra comentando ruidosamente as aventuras do colega. Também falavam de Breton, de Cendrars, de Apollinaire, de Torma, de Vaché, de Gide, de Trotsky, de pessoas que não encontravam há bastante tempo. 

“Você vê, Gonzalo, neste bar nós só permitimos poetas… e quem sabe, toureiros!” 

“Mas…”

“Bandidos, nunca!”

O hermano fez que concordava com a cabeça. Talvez Butch estivesse certo mesmo. O sapo começava a relaxar. E continuou a beber a cerveja, já mais calmo. 

Até que percebeu uma confusão na porta de entrada. Um grupo tentava entrar no recinto, mas estava sendo barrado. 

“Temos confusão”, disse Butch. 

Eram Sarney, Jader e Renan que faziam questão de frequentar aquele bar. Gritavam. O segurança, empurrado com violência por aqueles homens, tentava contê-los, mas estava sozinho. E eles eram três. Algo tinha de ser feito para evitar que os mequetrefes invadissem o local. 

Nesse momento Dillinger, Kelly e Cravan se levantaram e correram para ajudar o bouncer solitário. Na verdade, Cravan sozinho daria um jeito nos três. Mas os colegas se sentiram na obrigação de expulsar dali aqueles sujeitos. Bastou levar uns sopapos para que o trio batesse em retirada. Sarney perdeu um olho, que ficou pendurado por um fiapo de carne, roçando na bochecha. O globo ocular, dependurado do lado de fora da órbita vazia, balançava de um lado ao outro. Jader, por sua vez, teve o nariz quebrado. Perdeu dois dentes. E Renan saiu de lá com a mandíbula fraturada em vários pedaços. Todos eles fugiram do local se esvaindo em sangue, mancando, gemendo de dor, com vários hematomas e ferimentos pelo corpo. Foram escorraçados. 

“Eu lhe disse que aqui não aceitamos bandidos, Gonzalucho!”, falou novamente Butch, piscando um olho para o sapo. 

Kelly, Dillinger e Cravan voltaram para dentro do pub, ajeitando as camisas amassadas. Reuniram-se com seus colegas e brindaram para comemorar. Alguém, então, colocou uma moeda na jukebox iluminada e uma velha canção dos Pogues começou a tocar: 

I met my love, by the gasworks wall

Dreamed a dream, by the old canal 

I kissed my girl, by the factory wall

Dirty old town, dirty old town. 

Todos cantaram juntos, de canecas levantadas na mão, balançando as cabeças, bastante embriagados. Agora Gonzalo estava convencido. Lá, de fato, não entravam bandidos. Naquele bar, só havia poetas! 

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas(Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

4 comentários em O encontro do sapo Gonzalo com Butch Cassidy

  1. Dá-lhe que dá-lhe, pibe!
    Essa aventura emérita de nosso poético batráquio, me fez recordar algumas cenas de Rayuela de Cortázar, onde reminiscências de boxers se mesclam à vida dos personagens.
    Também meditei sobre a manipulação das imagens relacionadas ao uso dos cigarros…e se encontrar Gonzalo um dias desses, certamente tocarei no assunto: Stálin foi ou não o pai do PHOTOSHOP? Questão de suma pertinência entre tantas outras possíveis conversas.
    O endereço tá anotado em meu imaginário, gostei desse bar de poetas e imagino que em algum andar também estará um certo moço aloirado “fumando em meio à virações inquietas”…quiçá Gonzalo o encontre na próxima beberagem!
    Eu voltarei para conferir.
    Parabéns Pericás!

    Curtir

  2. Renata Seleme // 25/07/2011 às 11:26 pm // Responder

    Muito bom o texto. Parabéns.

    Curtir

  3. André Martins // 04/08/2011 às 12:58 pm // Responder

    Carajo! Dale Pericas! Texto “caceteiro”.

    André Martins

    Curtir

  4. Lendo sobre toureiros e pugilistas, remeteu-me a Hemingway e suas prosas com períodos curtos e diretos, porém intensos! O autor escreve com fluidez e simplicidade, mas mantendo a chama do enredo acesa! Pubs e cervejas também não poderiam faltar. Pequeno grande conto!

    Curtir

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. O melhor do Blog da Boitempo: outubro de 2011 | Blog da Boitempo
  2. As aventuras do sapo Gonzalo e Luiz Bernardo Pericás no Blog da Boitempo | Blog da Boitempo

Deixe um comentário