Os gorilas, tucanos argentinos

Nestor e Cristina Kirchner

Por Emir Sader.

O peronismo é o fenômeno central da Argentina há 67 anos, desde que Peron irrompeu bruscamente na história do país. Sua liderança passou a ser o fator divisório da história política do país, que ficou irremediavelmente dividido entre peronistas e antiperonistas. Estes poderiam ser (ou pretender ser) de esquerda ou de direita, mas eram sobretudo antiperonistas e nesta qualidade foram sempre vistos pelos peronistas.

O golpe de 1955, que tirou Peron do poder, amalgamou as forças que se pretendiam de esquerda ou de direita, em um movimento único. As forças populares apoiavam Peron, enquanto setores de classe média e da burguesia, em aliança, se opunham. Delegaram aos militares tirar Peron do poder, porque este os derrotava sucessivamente nas eleições (toda semelhança com Getúlio e o Brasil é real).

O golpe de 1955 gerou a palavra GORILA, para designar os golpistas, nesse caso de direita ou de “esquerda”. Na Argentina a palavra passou a designar os antiperonistas, disfarçados dos mais diferentes matizes. Os preconceitos da classe média branca – tipo “Cansei” – se expressaram das formas mais abertas, chamando os trabalhadores peronistas de descamisados, cabecinhas negras e outros epítetos, que o próprio Peron recuperou positivamente, formando-se o movimento dos descamisados.

Na intelectualidade esse movimento também se estendeu. O peronismo – da mesma forma que o getulismo – sempre tiveram dificuldades para se relacionar com os intelectuais, seja pelos preconceitos destes em relação aos traços populares dos movimentos nacionalistas, seja pelo estrito verticalismo que esses movimentos impunham a seus aderentes, dificultando a integração de intelectuais com os debates críticos correspondentes.

O peronismo mudou de cara várias vezes – passando inclusive pela cara menemista, que aparentemente negava preceitos básicos do peronismo original, como o projeto nacional, o papel do Estado, a centralidade do movimento sindical  – até chegar ao kirchnerismo que, nas condições da globalização, resgata bandeiras originais do peronismo.

Os governos de Néstor e Cristina Kirchner são, guardadas as devidas proporções, similares aos de Lula e Dilma nos seus aspectos essenciais, principalmente na prioridades dos processos de integração regional no lugar dos Tratados de Livre Comércio com os EUA e na prioridade de políticas redistribuitivas no plano interno, que estendem a aprofundam o mercado interno de consumo popular.

Porém, a direita argentina, diante do inquestionável sucesso de Lula, teve que se render a este e a única forma de fazê-lo foi tentar contrapor Lula aos Kirchner (de forma totalmente artificial). Até que FHC colocou as coisas no lugar e, em artigo para o Clarín– a cabeça da oposição política na mídia argentina – disse que os dois governos são similares (e ambos ruins), desconcertando a oposição momentaneamente, até que suas palavras se foram, como o vento… e a oposição segue exaltando Lula e denegrindo aos Kirchner.

Um novo livro da intelectualidade que já foi de esquerda e agora escreve no Estadão de lá (La Nación) e critica duramente os Kirchner, foi guindado ao primeiro lugar da lista dos mais vendidos: La audácia e el cálculo – Kirchner 2003-2010, de Beatriz Sarlo. Grande ensaísta de questões urbanas e literárias, Beatriz é autora de grandes livros, como Uma modernidade periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, Borges, un escritor en las orillas, Tiempo presente, Escenas de la vida pós-moderna e La ciudad vista – vários deles publicados no Brasil.

Depois de fazer uma interessante análise do jornalismo político argentino – similar ao nosso, mas com um peso das mesas redondas na TV e do rádio, mais fortes do que aqui – ela traça o itinerário da Argentina na década passada e no começo desta, arrasador, com tons elitistas, em que sobra o essencial, claro, para os Kirchner.

Beatriz Sarlo não poderia deixar de ser qualificada de gorila pelos meios kirchneristas, o que ela facilita ao escrever no La Nación e deixar transparecer tons elitistas e antipopulares – ao estilo tucano – nos seus artigos. Revelando como o peronismo descolocou a esquerda tradicional. Ou entravam no peronismo e eram assimilados (houve até uma tendência trotskista-peronista (?), do grande historiador Jorge Abelardo Ramos) ou ficam com a direita liberal (os radicais) contra o peronismo (o que sucedeu até com os comunistas) ou na ultraesquerda, como as infindáveis tendências trotskistas, isoladas, sem povo.

Assim, o kirchnerismo é a cara atual do peronismo e a força hegemônica na Argentina da segunda década do século XXI, com a provável reeleição de Cristina Kirchner e a dificuldade de grande parte dos intelectuais de acertar contas com essa força popular central da história política argentina. 

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo semanalmente, às quartas-feiras.

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