Contra a exportação de soja

Por Mouzar Benedito.

“O Brasil é um país abençoado por Deus. Não tem vulcões, não tem terremotos, não tem furacões, não tem desertos…”

Quantas vezes ouvi isso na minha infância! Realmente o Brasil é um país privilegiado.

Uma piada dos tempos da ditadura, quando muita gente via só defeitos em tudo que se referia ao Brasil e aos brasileiros, dizia que quando Deus criava o mundo começou a distribuir coisas boas e coisas ruins pelos continentes e países, foi pondo vulcões no Chile, na Itália, na Indonésia, na América Central… Deserto na África, na Arábia, na Mongólia… Clima gelado no norte da Europa, da América do Norte… E assim foi indo. No Brasil, foi colocando as mais belas praias, as maiores florestas, rios maravilhosos, clima ótimo…

Um anjo comentou em tom de protesto:

― Mas, Deus, por que o Senhor colocou tantas coisas ruins nos outros países e no Brasil só coloca coisas boas? Por que tanto privilégio para um país?

Deus teria falado pra ele:

― Você vai ver o povinho que eu vou pôr lá!

Era uma piada contada por gente de direita, esse pessoal que se envergonha de ser brasileiro, inveja gringos, mas pegava até em gente de esquerda, pois era um tempo de baixíssima autoestima entre nós, além de ter aquela coisa: “Esse povo que não reage contra a ditadura…”. Mas dá para adaptarmos a piada. Ele devia dizer:

― Você vai ver umas pragas humanas que eu vou pôr no meio da população de lá.

É uma praga humana mesmo, uma pequena parcela da população altamente predatória, que vai corroendo o Brasil. Tudo de bom vai se perdendo.

Não tivemos terremotos brabos, ainda, mas já tivemos tremores de terra, tufões e outros tipos de tragédia, como enchentes cada vez mais violentas e secas mais radicais, em boa parte produzidos por essa praga. Uma praga que vai derrubando florestas, poluindo praias, rios, tudo. Os rios secam ou viram esgotos que periodicamente transbordam e matam.

Mas e desertos? Não tínhamos desertos. Não tínhamos… De uns tempos para cá, temos.

No sudoeste do Rio Grande do Sul tem um deserto criado pelo homem, o deserto de Alegrete, fruto de uma agricultura altamente predatória, que utilizava maquinário pesado e muito veneno. O solo virou areia improdutiva em milhares de hectares, abrangendo vários municípiosem torno de Alegrete.

Para ter maior lucro e mais rapidamente, agricultores não pensaram no futuro e criaram aquele deserto. Chove lá, mas o solo não tem vida, não produz. Para tentar recuperar a área, muito dinheiro público vem sendo aplicado lá. Quer dizer, o lucro era individual e o prejuízo – muitas vezes maior do que o que os fazendeiros lucraram – é público. Nós pagamos.

Acontece que parte das pessoas que criaram aquele deserto migrou para outras partes do país, especialmente a Amazônia, e continuaram com suas práticas agrícolas desertificadoras. A eles se somaram outros e vão derrrubando a floresta para transformar, dentro de algum tempo, mais um pedaço do Brasilem deserto. A Floresta Amazônica, com aquela imponência toda, não está localizada sobre bons solos, ela é meio autossuficiente: suas folhas caem, “apodrecem” e adubam as árvores. Não é do solo que sai o alimento da floresta. O solo de lá é raso, se cavoucarmos poucos centímetros encontraremos uma camada dura, chamada laterita, que impede inclusive a penetração das raízes. Tanto que as grandes árvores têm raízes que se espalham para os lados, em vez de penetrar no solo, que é frágil.

Com pouco tempo de agricultura, ainda mais uma agricultura predatória, com grandes maquinários que compactam o solo e o uso de venenos contra pragas, aquilo vai virar deserto.

Para quê?

Tudo em nome do agronegócio: é para plantar soja e exportar. A Amazônia está sendo tomada pela soja, assim como a caatinga do oeste baiano, o cerrado do Centro-Oeste e outras regiões.

E tudo, ou quase, que se produz lá, vai para o exterior. Não serve em nada para os brasileiros. Equilibra a balança comercial, dá lucro, dizem. Mas estamos mandando para o exterior o futuro do Brasil.

Os agronegociantes dizem que tudo isso é besteira. Mas outro tipo de commodities já levou parte do Brasil para o exterior: o manganês do Amapá, exportado a preços baixíssimos para os Estados Unidos.

O manganês é um minério raro e caro, e uma das maiores jazidas do mundo ficava no Amapá. E toda ela, praticamente, foi levada para os Estados Unidos. Aproveitaram os governos da ditadura, que impediam qualquer discussão sobre o assunto, e levaram para os Estados Unidos muito mais do que precisavam. Foram depositando no deserto de Nevada, para uso futuro, e lá chegou a ter uma montanha enorme de manganês brasileiro, um verdadeiro monumento à glória do imperialismo. No lugar desse manganês aqui, na antiga Serra do Navio, sobrou um buracão e uma população pobre. Que lucro deu para o Brasil?

Pois com a soja – e também com a monocultura da cana de açúcar – acontece mais ou menos o que aconteceu na época. Para produzir soja e cana, perdemos extensões enormes de florestas, de solo, de nutrientes da terra… E teremos no futuro um grande deserto.

Quando se fala contra a derrubada das florestas, os agronegociantes e seus aliados argumentam: se não fizermos isso, vai faltar comida para os brasileiros. Mentira deslavada! Eles não plantam comida, plantam negócios. Plantam as tais commodities que podem servir momentaneamente para equilibrar a balança comercial e, principalmente, dar lucro aos devastadores.

Para o nosso futuro, desertos!

Em 1990 ou 91, participei em Brasília de uma reunião da FAO (órgão da ONU para a agricultura e os alimentos), como jornalista, e nela um francês já radicalizava contra a produção de sojaem países do Terceiro Mundo.Ele tinha consciência, e explicou como virou militante: “Visitando vários países, vi o povo passando fome e, em vez de alimentos, neles as grandes plantações eram de soja, para exportar para a Europa, para alimentar porcos e vacas da França, da Alemanha…”.

É isso. Agronegociante está se lixando para a alimentação do povo. Só interessa o lucro rápido.

Agora há também uma campanha para que os Estados Unidos eliminem taxas sobre a importação de álcool do Brasil. Ora, para quê? Neste ano mesmo faltou álcool aqui. E já tivemos substituições de grandes áreas de plantio de feijão e batata, por exemplo, pela cana de açúcar. Usinas arrendam as terras e interrompem a produção de alimentos.

O aumento da exportação será um suicídio para o Brasil. O lucro não será dos brasileiros, será de uma minoria, da praga devastadora e negociante. Um pessoal que, quando o que produzem barateia no exterior, pede socorro ao governo daqui, e entra dinheiro público para as gordas contas bancárias deles. Quando aumentam os preços no exterior, eles desabastecem o Brasil, dizendo que “lá fora” o que produzem vale mais.

Portanto, uma campanha que valeria a pena é essa: chega de exportação de soja! E não ao incremento da exportação de álcool. O Brasil do futuro depende disso.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças-feiras.

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Boitempo indica: para assistir após ler

Recomendamos que o leitor ou leitora assista ao filme A carne é fraca após a leitura desta coluna de Mouzar Benedito.

5 comentários em Contra a exportação de soja

  1. Mouzar Benedito // 06/07/2011 às 3:37 pm // Responder

    É estranho eu comentar meu próprio texto… Mas o comentário é sobre o vídeo no final. Gostei. Não sou vegetariano, ao contrário, como bastante carne. O problema aí é o mesmo da soja e do álcool: devastam o Brasil, prejudicam nosso solo e nosso clima para vender commodities.
    Mouzar

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  2. Julia Macedo // 26/07/2011 às 7:18 pm // Responder

    e tem gente que acha que ser vegetariano só traz coisas boas ao meio ambiente. Eu não como soja!

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  3. JOÃO NEVES // 08/11/2011 às 1:07 pm // Responder

    Concordo plenamente com o documentário exibido mas será que não deveríamos pensar numa política de controle de natalidade também? Afinal nosso planeta tem um limite mesmo que as pessoas consumam outros tipos de alimento, esse também em algum momento chegaria a um colapso por falta de espaço para produção ou outro insumo qualquer, ou seja, temos um espaço limitado e esse limite tem que ser respeitado.
    joaoqvoa

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  4. Bom texto! É interessante ressaltar também que essas grandes propriedades produtoras de soja e cana (talvez com exceção de uma ou outra cooperativa) não cumprem a função social da terra, legimitada pela nossa constituição. Afinal, os proveitos dessas culturas são plenamente financeiros e centralizados aos grandes latifundiários. Desertificar nosso ambiente para alimentar o gado chinês e o porco alemão (que bem alimentados gerarão mais lucro, mas externo) me parece bastante injusto.

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  5. Clovis Pacheco F. // 25/05/2016 às 2:49 pm // Responder

    A soja desgraçou os ervais do Rio Grande do Sul, com sua destruição para fazer as plantações. Acontece que os ervais surgiram no tempo dos jesuítas, no século XVIII, que ao cortarem madeira para uso das missões, madeira vagabunda para a lenha, madeira de lei para construção e móveis, poupavam a Illex paraguariensis, para que se reproduzissem, pois o chimarrão inventado pelos Guarani era não só importante para consumo local, mas para exportar para o Vice-Reinado do Rio da Prata, e que rendia bom dinheiro. Acontece que a reprodução da Illex é demoradíssima: a semente só germina depois de 50 anos, e precisa antes passar pelos intestinos do quero-quero, que fornece as enzimas necessárias, para a germinação 50 anos depois. É que nem a amarula, que só brota depois de ser excretada pelos elefantes. Aliás, eles comem o fruto da amarula, que fermenta nas tripas deles e os deixam embriagados, que nem nós, quando saíamos do Bar da Tia Rosa ou do Bar do Zé! Agora, é preciso lembrar, também, o aspecto afetivo: erva-mate é símbolo do Rio Grande do Sul, e soja, de japonês, de chinês e de gringo da Anderson-Clayton. Quanto a esse truste nefasto – que truste não o é? -, durante muito tempo, foi o oligopsônio que impunha preços aviltados. Assim, antes de começar a febre da soja, um quilo de mate chimarrão custava o mesmo que uma dose de pinga vagabunda, e agora está por volta dos trinta reais… Depois, a China se tornou a grande compradora. Mas agora, depois da cagada que “os coxinha” fizeram, afastando a Dilma, acho que o comércio a tal matéria-prima vai sofrer um baque.

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