A crise do livro

"Torre de Babel" construída com livros, em Buenos Aires, pela artista Marta Minujin

Por Lincoln Secco.

Para Ivana Jinkings, editora marxista.

Nada inquieta mais um leitor contumaz e bibliófilo pobre do que a perspectiva da leitura digital. É bem verdade que o advento da Televisão já prognosticava o fim do livro com suporte de papel. E é certo que a invenção da imprensa destronou para sempre o manuscrito (embora não com a rapidez que se imagina).

A produção do livro atingiu alturas inimagináveis com a III Revolução Industrial. O barateamento e a diminuição do ciclo de rotação do capital fixo e circulante invertido na edição e, por fim, o livro eletrônico ou disponível virtualmente on demand mimetizaram processos que ocorrem na indústria em geral: Just in time, salário por peça (terceirização) etc.

O ramo livreiro, no entanto, ainda guarda muito espaço para o artesanato e a atividade do escritor não se submete realmente ao capital. Daí por que é difícil prefigurar o fim do livro em papel.

Como disse recentemente Gunther Grass, muito provavelmente o livro voltará a ser o que era até o século XIX e um pouco depois: um bem valioso que se coleciona e se deixa como herança aos filhos. Um livro assim voltará a ser belamente encadernado. O prazer de ler também voltará a ser estético e físico.

Quanto ao conteúdo, é possível que só autores clássicos ou pensadores críticos e profundos venham a ter livros em papel. O livro virtual viverá muito bem nos futuros meios de informação que ainda sequer imaginamos. Hoje já se pode dizer que a maior parte das teses acadêmicas que são “publicadas” on line não precisam ser editadas em papel. Algumas o são por pura vaidade do autor ou porque as bancas de concurso de docentes talvez ainda valorizem edições tradicionais. Mas isto vai mudar e o autor não precisará pagar editoras ruins para lançar obras previsivelmente encalhadas. O que não implica que sejam inúteis. Elas serão mais pesquisadas através de programas “varredores” especializados da internet em busca de dados precisos.

Da mesma maneira, os Best Sellers dirigidos a públicos que lêem obras que são produtos de campanhas publicitárias e pesquisas de mercado, terão mais abrigo na internet e a razão é simples: ninguém relê Sidney Sheldon hoje em dia, assim como ninguém sabe quem foi Otavio de Feuillet ou Humberto de Campos, palavrosos e bem sucedidos escritores de suas épocas. Mas todos precisam retomar Dom Quixote ou Macunaíma. Estes viverão virtualmente para os leitores que quiserem fazer deles o uso prático (o mais conhecido é o resumo para vestibulares), mas serão lidos e relidos em papel pelos que preferirem refletir sobre a literatura.

O e-book é uma benção, pois vai diminuir o custo ecológico do livro, salvando árvores que eram consumidas por livros de consumo rápido e frenético. Afinal, na rede (virtual) tudo se faz com rapidez. Na rede (real) tudo se faz com prazer.

Sebos

O maior exemplo da pletora inútil de livros que se excederam no século XX são os sebos paulistanos. Acúmulos notáveis de obras magníficas ao lado de outras que nunca deveriam ocupar tanto espaço.

É provável, portanto, que na nova era do livro, os sebos se tornem de novo antiquários de belas encadernações e raridades recônditas. Seus desvãos voltarão a ser motivos de encontros inesperados.

Um exemplo era o sebo Lisboa, o mais barato de São Paulo, porém com obras seletas. Situava-se na Rua José Bonifácio, na ladeira que desaguava numa solitária entrada do metrô Anhangabaú. Lettres de Marx e Engels a preço de banana, coleção paulística e livros da José Olympio estavam sempre por lá.Antonio Lisboa, o dono pernambucano, tinha um cortiço na Vila Mariana. Era dono do local onde seu sebo se instalara. Esse era o segredo para vender barato, dizia ele. Tinha começado como simples vendedor de enciclopédias de portaem porta. Em fins dos anos sessenta criou o seu sebo. Era conservador politicamente e fingia não se interessar pelos títulos. Mas seus preços baixos selaram para sempre a sorte do local. Saiu sem fazer alarde e desapareceu. Depois, o Brandão tentou abrir ali uma filial, mas como os preços do Brandão são famosos pela altitude inatingível, ninguém mais freqüentou o lugar e aquilo virou depósito.

Os depósitos de livros, estes sim desaparecerão. Os livros do futuro, estes serão eternos.

***

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

4 comentários em A crise do livro

  1. Sandro Limeira // 04/07/2011 às 3:22 pm // Responder

    Excelente texto! Estava na hora de os intelectuais de esquerda deixarem de tratar o e-book como um tabu.
    E nada mais adequado que dedicar o artigo a Ivana Jinkings, que teve a ousadia de iniciar sua editora no formato publicando obras de Marx e Engels.
    Aplausos gerais.

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  2. Às vezes é bom ler uma opinião formada sobre esse assunto que nos deixa com tanto medo. Quebrar o tabu e divulgar a informação é o mais necessário.

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  3. Lincoln, achei interessante sua reflexão e a sacada da possibilidade que os livros não-impressos oferecem para obras de “consumo rápido”.

    No entanto, não concordo com uma separação tão simplista quanto a que você traçou entre a rede virtual e a rede real. Elas não existem a priori, e são seus componentes que a estruturam. Assim, o blogue da Boitempo, por exemplo, faz parte de uma rede virtual e é acessado por pessoas que não necessariamente buscam a rapidez na informação. Buscam também o prazer de ler textos, de refletir sobre opiniões e – por que não? – literatura.

    Com isso, quero dizer que não devemos restringir as redes a espaços onde imperam certas práticas. Um acadêmico pode refletir sobre literatura lendo Macunaíma no Ipad.

    Tenho medo de que, como você percebeu bem, surja um senso comum no meio livreiro de que, com os livros digitais, o adequad seja seguir o rumo das edições bem cuidadas, com poucas tiragens, caras e, consequentemente, para poucos. Os editores devem ousar e criar coleções – tanto digitais quanto em papel – que levem obras de qualidade a um público cada vez maior, barateando-as e divulgando-as.

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  4. Sandro, Ana e Caio
    parece que o meio digital ainda não atingiu o mesmo conforto e segurança do papel. Mas vai chegar lá. Por razões meramente pessoais, eu ainda escolho o papel sem desdenhar a leitura informativa ou crítica na rede virtual, como vocês.

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