Crônicas de Berlim (5): O falso amigo

Por Flávio Aguiar.

Na última crônica prometi levar as amigas e os amigos a jantar (ou almoçar), falando um pouco de gastronomia.

Mas antes disso, ou melhor, no caminho, vou lhes contar curioso caso que comigo se passou, e que classifiquei no meu arquivo de “falsos amigos”.

“Falsos amigos”: o termo vem da Lingüística (desculpem, não posso escrever sem trema; é como amputar um amigo da minha vida). Indica aquelas palavras que são escritas do mesmo modo, ou quase, em línguas diferentes, mas têm significado diverso nelas.

Entre o português e o espanhol há muitos falsos amigos. Por exemplo: “parado”. Em português “parado” significa “sem movimentos”. Eu posso estar sentado e estar parado. Em espanhol, “parado” significa “de pé”. Eu não posso estar sentado e estar “parado”. E por aí vai.

Entre o português e o espanhol é fácil imaginar a existência de inúmeros “falsos amigos”. Mas eu nunca imaginara entre línguas tão diferentes como o português e o alemão. É verdade que há muitas palavras em alemão que foram importadas do latim, ou das línguas românicas, mesmo para a fala cotidiana. Por exemplo: “interessant”, ou “das Interesse”. Mas aí o significado é praticamente o mesmo do português, embora o substantivo seja neutro, gênero que para nós é só residual (p. ex., “isso”, “aquilo”). É verdade que lá vêm os alemães com sua disposição (ou será já mania?) de enfileirar palavras e cria-se “das Interessengebiet”, assim, numa enfiada só, que quer dizer “esfera de interesse”, ou, literalmente, “região de interesse”. Outro exemplo interessante é “komisch”, que veio de uma mistura do latim “comicus” e do francês “comique”, parece que lá pelo século XV. Para nós, além do significado teatral, “cômico” quer dizer, sobretudo, “engraçado”, que em alemão pende mais para “witzig”, “espirituoso”. Já em alemão “komisch” sugere mais algo “ridiculamente esquisito”.

Pois comigo passou-se algo decididamente “komisch” nessa matéria.

Estava eu posto em sossego, passeando na Winterfeldplatz perto de minha casa… Suspendamos um pouco a narrativa. A Winterfeldplatz é uma simpática praça ao lado de uma igreja, onde tradicionalmente, inverno e verão, acontece às quartas e aos sábados uma das melhores e mais procuradas feiras livres de Berlim. Como no Brasil, nela se encontra de tudo, sobretudo aos sábados: quinquilharias, comidas, flores, até barraquinha com produtos brasileiros. Mas… calma; nossas feiras livres e as alemãs são, de certo modo, falsas amigas. Senti isso, recentemente, ao ir a uma feira livre em São Paulo. Senti-me um estranho, porque, notei, as pessoas me olhavam como um estranho. Por quê? Porque (sem afetações, que detesto, de brasileiro que quer se “europeizar”) eu estava me comportando como os berlinenses. Estes vão à feira livre para… passear, sobretudo, além de fazer compras. Isso nós fazemos no brique; mas raramente nas feiras livres. Aqui as pessoas se vestem (não formalmente), se produzem, para ir à feira. Berlim é uma cidade muito fotogênica: as pessoas se produzem para a “fotografia” na feira.

Mas não era um dia de feira. Era um dia comum, de semana, e a praça estava quase vazia. Caminhava eu meio sem rumo, quando rumou diretamente para mim um velhinho, muito atarefado com sua bengala. Era curioso, porque aqui a maioria dos velhinhos bem velhinhos caminham com um andador, não com uma bengala. Mas este se vinha com sua bengalinha, sua gabardine meio surrada e uma boina que mais parecia francesa do que alemã.

Ao chegar bem perto de mim, o velhinho tropeçou e tropicou para frente. Eu estendi os braços, esperando poder ajudá-lo, antes que caísse, ou mesmo depois. E instintivamente gritei: “Opa!”. Foi a conta. O velhinho se empertigou e, me olhando com fúria nos olhos, disse, também com fúria: “Was soll das? Machen Sie Witze übermich”? Poderíamos traduzir livremente por: “Que que é isso, seu engraçadinho”? (Mais ao pé da letra, “O que significa isso? O senhor está fazendo piadas sobre mim”?). E, empunhando sua bengalinha com determinação, contornou-me e seguiu seu caminho pela linha reta em que vinha.

Quando ele se foi, eu já entendera o que se passara: é que “Opa”, em alemão, é uma palavra do vocabulário infantil ou doméstico para “vovô”, assim como “Oma” vale para “vovó”. Ou seja, ele entendeu que eu dissera mais ou menos o seguinte, diante de sua quase queda: “Ô seu vovozinho!”.

Assim, minha interjeição de surpresa e solidariedade revelou-se uma “falsa amiga”. Mas consolei-me, pensando que ela contribuíra para evitar sua queda, através da fúria que dele tomou conta. Afinal, nem tão falso amigo eu fora, embora inoportuno e inocente.

Continuei meu caminho, tanto pela praça quanto pelo labirinto das línguas.

Decididamente, agora vamos ao jantar.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

3 comentários em Crônicas de Berlim (5): O falso amigo

  1. Suely Farah // 24/06/2011 às 8:36 pm // Responder

    Saboroso o seu texto, Flávio, como sempre.
    Mas eu diria que muitas vezes nem precisamos estar em línguas diferentes para tropeçar nas palavras, entre intenção e gesto, e parecermos falsos amigos a quem nos ouve ou lê, quando somente tudo que desejamos é demonstrar solidariedade, apoio, interesse.
    Fazer o quê, não é mesmo?
    Saudações paulistanas
    Suely

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  2. LEGALLLLLLLLLLLLL!!!

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