A filha do príncipe
Por Roniwalter Jatobá.
Integrará seu novo livro, Cheiro de chocolate, a ser editado pela Nova Alexandria no segundo semestre de 2011.
Chamava-se Leididai. Contaram outro dia, em São Miguel Paulista, que esse não era o seu nome verdadeiro. O escrivão do registro civil, ciente da lei, não quis aceitar o que era desejo da família. Com o consentimento amuado do pai, o oficial marcou no papel Eva ou Maria Aparecida. Na morada à beira do riacho Jacuí, porém, a menina foi sempre chamada — e agora lembrada — do jeito que todos gostavam: Leididai.
Nascera em 1982. Três meses depois do casamento do século, aquele que uniu o príncipe de Gales e a jovem Diana Spencer, a menina foi batizada numa cerimônia coletiva num galpão comunitário do Jardim Pantanal. O padre abençoou a todos e os pais da menina, Aírton e Ester Silveira Lima, se sentiram também nas graças de Deus, naquele domingo.
Ester era mulata, beirava os trinta anos, ágil como um demônio. Diarista de segunda a sábado, limpava com presteza e dignidade as sujeiras de um asilo para idosos ricos numa travessa da rodovia Raposo Tavares. Aírton era loiro, tinha ainda entranhado nas veias os resquícios das noitadas sexuais dos colonizadores holandeses no Ceará do século 17. Pelo porte, era chamado de Príncipe, apelido que o deixava orgulhoso, mas triste pela sua contínua e hereditária pobreza. Trabalhava de borracheiro numa travessa da avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, mãos calejadas de recauchutar precários pneus de caminhão.
— É a minha princesa — exaltava o pai quando passeava aos domingos com a menina já grandinha, toda arrumada pelas mãos da mãe que lhe fazia todas as vontades. — Veja… — e mostrava aos amigos os seus cabelos loiros e crespos, herdados dos dois, artisticamente trançados e bem penteados.
Embora fosse uma menina graúda, de aparência saudável, mostrava-se frágil com as mudanças do tempo. Nos meses de chuva, quando as águas do Tietê avançavam pela região insalubre, ela passava as noites com a respiração ofegante como se um ser fantasmagórico apertasse a sua garganta. No decorrer de sua vivência, a menina teve cachumba e outras doenças, e no primeiro aniversário quase morre de desidratação. Resistiu, no entanto. Quando completou cinco anos, já se virava sozinha na pequena moradia, apenas com a ajuda de uma vizinha prestativa. Enquanto os pais corriam por São Paulo durante o dia, ela brincava de boneca em frente à velha TV sempre ligada ou, em raras tardes, se juntava às dezenas de crianças de sua idade à beira de uma lagoa, onde se divertia com uma alegria inocente.
— Leididai não anda nada boa — disse a mãe num frio anoitecer quando Aírton pisou na soleira da porta.
Era sábado, tinha chegado de pouco. Cansado, dia inteiro no trabalho, ainda vinha com o corpo frio do chuvisquinho que pingava lá fora. Nesse instante, Ester correu para o cômodo dos fundos sem ninguém chamar, preocupada, apressada, limpando as mãos no avental claro e úmido.
O Príncipe só estranhou. Depois, correu para lá quando sentiu os gritos da menina. Assim mesmo pensou em gritos de medo ou podia mesmo ser divertimento em frente à televisão. Mas não, muito pior.
A menina, deitada no sofá que servia de cama, enrolada num cobertor grosso, se estrebuchava como se estivesse mordida de cobra. Gritava de fazer dó, chorava um choro pesado, choro sofrido de muita dor e fraqueza. O Príncipe então agarrou Leididai, jogou uma toalha por sobre sua cabeça, jeito de se livrar da chuva.
— Fique aí — ele disse para a mulher.
Correu pela rua se livrando das poças d’água e montes de lixo. Atravessou a estrada de ferro, cortando caminho entre fios elétricos e canos de água clandestinos. Seguiu pelos trilhos, ouvidos atentos para o barulho de uma noturna composição. Cruzou uma pinguela no riacho Jacuí e, em passos largos e encharcados, pisando forte agora nas manchas de chuva sobre o asfalto, alcançou a antiga estrada São Paulo-Rio.
Entrou no hospital ao lado do Mercado Municipal, molambo molhado de gente. Na sala de espera, olharam para ele assustados. Parou. Depois, o Príncipe esperou zanzando de um lado para outro, filha no colo. Cadeiras ocupadas, tremura nas pernas. A enfermeira, sentada, cega para eles, parada. Ele chamou um doutor que passava apressado, roupa branca de cima a baixo, que pusesse na frente sua filha, Leididai.
— É doença da brava — o Príncipe implorou. — Veja… — mostrando as manchas que começavam no pescoço e desciam, cada vez mais vermelhas, até os dedos nas unhas.
Ficou ali segurando a menina com a mão e, com outra, suplicando que dessem um jeito rápido, levassem logo ela para dentro.
De repente, sentiu o coração de Leididai palpitar no seu peito, descobriu a toalha do rosto dela, suor marejando. Enxugou o rosto da menina, que nem abriu os olhos, ficou tresvariando, mexendo a boca. Calada. A respiração foi ficando mansinha como se tivesse dormindo. Depois, sumindo de vez. O corpo dela se esfriando, gelando, mais um óbito de sarampo na abandonada cidade de São Paulo.
Eva ou Maria Aparecida? A princesinha estava morta.
***
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000);Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Salve, Roniwalter. A tua, a nossa Leididai se inscreve entre os teu contos da vida operária..
Abraço.
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“entre os teus”, quis dizer.
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muito bom o texto!
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