Os últimos dias de Sandoval Herculano nas terras do Taperebão
Por Izaías Almada.
Conto retirado do livro Memórias emotivas, editado em 1996.
Sandoval era comunista. Ou melhor, carregou o estigma pelo resto da sua vida. Na verdade, nunca soube o que era isto. Apenas achava que quem trabalhava a terra de sol a sol, mais dia, menos dia, tinha que possuir um pedacinho de seu para cultivar.
Costumava dizer isso ao pai e aos dois irmãos que iam com ele trabalhar lá para os lados do Taperebão. Tudo aconteceu nos anos em que um tal de Jango foi presidente do país, logo depois que a sua mãe morreu.
“Deus esqueceu o Taperebão”, costumava dizer Sandoval. O diabo, nem conheceu.
Filho mais velho de Milagres e Tenório Mariano, Sandoval cresceu tangendo e marcando gado numas terras que ninguém sabia muito bem de quem eram, mas que o coronel Zaqueu Totonho cercou e mandou um grupo de vinte homens armados vigiarem. Cento e cinquenta hectares ao todo. Outros diziam que as terras eram do governo.
Sandoval tinha também uma irmã, a caçula Marieta. Era ela quem tomava conta da casa. Quando a mãe morreu, Marieta tinha onze anos de idade e ficou mulher naquele mesmo ano.
Foi tudo muito rápido.
As ideias foram chegando por entre o mato e foram se ajeitando pelas vendas e botequins, nas conversas de beira de estrada e na cabeça do pessoal. A terra tinha que ser dividida numa tal de reforma agrária. Tal qual no pensamento de Sandoval. Para isso, era preciso organizar os homens que trabalhavam as terras. Formar um sindicato.
O coronel Zaqueu Totonho reuniu seus capangas e trabalhadores e disse que quem estava espalhando aquelas ideias era um pessoal chamado de comunista, gente que tinha ligação com os políticos da capital. Gente aparentada com o demônio.
Sandoval ouviu o falatório de Zaqueu Totonho e pensou discutir o assunto em casa na hora do jantar. Não pode.
Naquela noite não teve jantar. Marieta tremia de febre e tinha as roupas e as pernas ensangüentadas. Foi gente do Zaqueu, disse a menina.
O pai de Sandoval foi chorar escondido junto à cisterna. Os outros dois irmãos deram banho na irmã, trocaram a sua roupa e rezaram para Nossa Senhora do Amparo. Sandoval jurou vingança.
Três dias depois apareceu com Marieta no Taperebão, a cavalo. Cheiro de sangue. Sandoval era homem sem medo. Um dos capangas de Zaqueu tentou interferir e foi abatido com uma foiçada na testa. O verdadeiro culpado não teve tempo de correr. Um tiro na nuca e outro no pulmão esquerdo.
Zaqueu Totonho soube de tudo e considerou que a honra da menina estava lavada. Deixou que o pai de Sandoval e os irmãos continuassem trabalhando para ele, mas espalhou a notícia de que os comunistas é que tinham criado aquela situação.
Sandoval e Marieta nunca mais foram vistos no Taperebão. Dizem que ela é professora primária no Estado de Tocantins. Sandoval foi ser chofer de táxi em Belo Horizonte.
Zaqueu Totonho foi eleito deputado estadual e depois escolhido vice-governador de Minas Gerais, logo depois do golpe que derrubou Jango para acabar com o comunismo no Brasil.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Tão Brasil, hem, Izaías? A semana passa distribui um texto seu que fala de um diálogo do narrador com o filho. A repercussão foi ótima.
Abraço fraterno.
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“A semana passada”, quis dizer. Este meu teclado…
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Muito bom esse conto, poderia estar contido em algum lugar no texto de “Cangaceiros” de José Lins do Rego. Parabéns, Izaías!
Agora estou curioso em conhecer sua obra.
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