Crônicas de Berlim (4): O rei das batatas e das ruínas

Por Flávio Aguiar.

Vamos aproveitar que por esses dias já se ensaia um pouco de verão em meio à primavera, com temperaturas perto dos 30 graus, para fazer um dos meus passeios preferidos aqui em Berlim. Vamos à vizinha cidade de Potsdam, que era sede da residência de verão dos reis da Prússia.

Sugiro que aproveitemos o dia ensolarado para irmos de barco. Vamos até o fim da linha do metrô Wannsee que, como o nome diz, fica à beira de um lago (der See; die See, feminino, é mar). Lá tomamos o barco. Podemos ficar no convés superior, ao sol, tomando uma cerveja ou um vinho branco. Essa é uma diferença palpável entre brasileiros e alemães. Em média, tirando ocasiões especiais como a do nosso culto pelo bronzeamento praiano, diante da mesma situação um brasileiro senta à sombra, um alemão senta ao sol. Aqui a expressão “vai pela sombra” não faz sentido.

Mas olhemos para os lados: a paisagem é belíssima, e o vento, apesar do sol, fresco. Vamos por entre ilhas verdes e centenas de pequenas embarcações.

Ali adiante há uma praia (a maioria delas por aqui é artificial, com areia trazida de longe). Mas olhemos bem: essa é dividida por um muro não muito alto. Não, não: não se trata de uma possível mania de construir muros. É que se atentarmos bem, veremos que um lado da praia é para freqüentadores comuns; o outro é para nudistas.

Aliás, muitos alemães simplesmente adoram ir aos parques e beiras de lago por aqui e lá se pelar, em parte ou no todo. Não se trata de exibicionismo; é um culto ao corpo e à natureza comum por aqui, muito arraigado desde os anos 20. Tão arraigado que até os nazistas se aproveitaram dele, no seu ideal atravessado de construção de um “homem superior”. Esse deveria ter não só um espírito, mas um corpo também superior, algo assim entre um ideal de biótipo germânico e estatuária grega.

Deixemos de tergiversações. Vamos apressar o nosso filme, apesar das delícias ao redor, e chegar logo a Potsdam (são umas duas horas de viagem). Lá chegados, tomemos um ônibus e vamos para o Palácio de Sanssouci (do francês sans souci – livre de preocupações), meu lugar preferido. Era a residência de verão do rei Frederico, o Grande, Friedrich, der Grosse. Esse Frederico viveu de1712 a 1786, sendo rei da Prússia a partir de1740. A Alemanha (que é um país bem mais jovem do que o Brasil, fundado apenas em 1871 – por isso, quem sabe, muitos dos dramas terríveis que ela viveu devam ser vistos como arroubos de adolescente) não existia, e a Prússia era um reino bastante desorganizado quando ele assumiu a coroa, sucedendo seu pai, o reiFrederico Guilherme I. A Prússia vivia cercada por países poderosos e temíveis, e muito mais importantes do que ela, como a Polônia (!), a Dinamarca, a França, a Suécia, a Baviera e a poderosíssima Áustria.

Frederico Guilhermeficou conhecido como o “rei soldado”, porque passou a vida inteira organizando seu exército. Mas quem usou mesmo esse exército foi Frederico seu filho, que tornou a Prússia um reino conhecido, reconhecido e temido: com ele a Prússia começou a criar o clichê de um “estado militarizado”, que depois se estendeu para toda a Alemanha. Assim ele submeteu, primeiro, a própria Prússia a seu poder, e depois, dobrou alguns dos vizinhos, com uma característica muito alemã. Frederico, que comandava pessoalmente suas tropas, era muito pontual: chegava antes do inimigo ao campo de batalha, e tomava conta das melhores posições. Foi considerado o maior estrategista de seu tempo.

Curiosamente, Frederico não queria ser rei. Fez de tudo para escapar a seu destino, que provou-se inevitável. Chegou a tentar fugir para a Inglaterra com um amigo, Hans Hermann von Katte, quando tinha 18 anos. Ambos foram presos, e o pobre Hans Hermann pagou o pato. Por ordem do rei, foi decapitado por aquela insolência, eFrederico Guilhermeobrigou o filho a assistir a execução, coisa que deixou o rapaz catatônico durante três dias.

Outro problema que a realeza lhe causou antecipadamente foi a obrigação de casar-se. Terminou casando-se com Elisabeth Christine von Brunswick com quem, parece, nunca teve relações sexuais, pagando-lhe e pedindo-lhe apenas visitas de cortesia e protocolo.

Isso valeu inúmeras futricas seculares sobre uma possível homossexualidade sua. Mas confesso que nada encontrei, nem muitos historiadores encontraram, que trouxesse fundamento a tal consideração. Ele era simplesmente misógino, e sexo, aparentemente, não era importante para ele, fosse em que direção fosse. Quando morreu, foi sucedido por seu sobrinho, Friedrich Wilhelm II, cuja primeira providência foi mandar construir um novo palácio para si e outro, à distância de observação, para sua amante principal. Esses reis…

Embora autoritário, afinal noblesse oblige, Frederico deu notável impulso à educação, abrindo-a a jesuítas, huguenotes, laicos, atraiu judeus da Espanha e Portugal, procurando fixá-los sobretudo na fronteira com a Polônia, para que comerciassem com os judeus do outro lado da fronteira e assim implementassem os negócios do reino. Modernizou o estado prussiano, trazendo-lhe eficiência e combatendo ativamente qualquer forma de nepotismo ou corrupção. Enfim, um reizaço!

Mas o que distinguiu mesmo Frederico, ao meu olhar, foi a construção de Sanssouci, que ele supervisionou pessoalmente, e seu apreço… pelas batatas e pelas ruínas!

Quem visita os palácios de verão dos reis europeus fica impressionado com o seu tamanho e seu ar suntuoso, por vezes em demasia. É que a ida dos reis para esses palácios nada tinha de “férias”. Para lá ia a corte toda, e lá o rei recebia embaixadores, ministros e meio mundo. Sem falar nas acomodações para a criadagem.

Pois Sanssouci nada tem dessa pompa e circunstância. É relativamente pequeno, e tem um único piso, exceto na parte dedicada à rainha, quando ela lá ia, e que era completamente separada daquela dedicada ao rei. Construído no alto de uma colina, é propositadamente baixo, de modo a não dar impressão de grandeza. Ao invés de acomodar uma corte, ele acomodava os amigos intelectuais, escritores, poetas e músicos cuja companhia Frederico adorava, sendo ele mesmo compositor, e nada bissexto. A sala mais impressionante do palácio é a sua biblioteca, pequena (somente alguns milhares de volumes), mas ilustre. O morador mais famoso desse palácio foi o filósofo francês Voltaire, que ali residiu dois anos. Sua proverbial amizade com Frederico (tiveram uma copiosa correspondência) terminou quando o filósofo atacou a política da Academia de Ciências de Berlim, cujo diretor também era do círculo preferencial do rei. Frederico mandou até prender Voltaire, mas acabou soltando-o. Anos mais tarde eles se reconciliaram, continuando uma correspondência amistosa até a morte do filósofo, em 1778.

Outra preciosidade de Sanssouci é o seu jardim, em forma de patamares, como numa escadaria. Admirador da Itália, Frederico trouxe desse país figueiras para ornamentar sua casa de verdadeiro “repouso”. Acontece que as figueiras não resistiriam ao clima bem mais frio da Prússia. Mandou ele então construir viveiros envidraçados para elas, fechados no inverno, o que lhes deu um ar esguio de trepadeiras – talvez uma nova espécie, quem sabe. Pelo jardim há também verdadeiras “meia-luas” de assentos, com uns vinte metros de diâmetro, ou até mais. São feitas de tal modo que, sentando-se numa ponta e falando-se em voz baixa ou até sussurrando, o interlocutor na outra ponta distingue com clareza o que dissermos. Frederico, se não tinha paixão pelas declarações amorosas, pelo menos a tinha pelas conversas.

Há outras coisas agradáveis de se ver nesse parque, que é enorme, e, inverno e verão, atrai milhares de visitantes. Mas quero encerrar com duas especiais, que justificam o nome dessa crônica. A um canto do palácio, no alto do jardim, está o túmulo de Frederico, cujos restos mortais para lá foram levados apenas em 1991, depois da queda do Muro (Potsdam fica no leste, na antiga Alemanha Oriental), cumprindo sua vontade, que era a de lá descansar ao lado de seus cães galgos preferidos (coisa de rei).

Pois encontraremos sempre sobre seu túmulo singelas… batatas, colocadas lá por mãos anônimas. É que Frederico foi o grande impulsionador do cultivo da batata na Prússia, e por extensão, na Alemanha. Foi ele que começou a fazer da batata, que tem origem americana, um “prato nacional alemão”.

Assim esse rei tão misógino quanto guerreiro (Napoleão, ao visitar seu túmulo em 1807, teria dito que se ele ainda vivesse, ele, Napoleão, não estaria ali na condição de vencedor), é hoje cultuado como o rei que talvez mais salvou vidas entre e durante as guerrasem que a Alemanhase envolveu, inclusive a Segunda Grande Guerra. Pois se não fossem as batatas, a estimativa é de que o número dos mortos de fome e de doenças conexas seria incrivelmente maior do que, ainda assim, foi registrado. Pena que a atitude generosa de Frederico (inclusive em relação aos judeus, apesar dele observar que eles deveriam ser fiscalizados com rigor porque tendiam a eludir o fisco) não valeu para os campos de concentração, essa imagem horrível que a Alemanha deixou para a posteridade mas que felizmente não é a única.

Agora entremos de novo no palácio, e olhemos através da porta principal, para a colina em frente. Veremos uma das obras mais importantes de Frederico, junto à caixa d’água que fornecia (talvez ainda forneça) água para os moradores e visitantes. Frederico achava que a Prússia, perto da Itália, da Grécia, até da França, era uma terra “pouco civilizada”. Faltava-lhe, por exemplo, a clarté (clareza) dos escritores franceses. Ele acusava os escritores da língua germânica de serem complicados demais, de escreverem frases enormes, que ocupavam uma página inteira, e que só se ia descobrir o verbo principal que dava sentido a tudo ao final. Mas… ele pensava que a principal ausência para a Prússia ser uma “alta civilização” era a falta de um sentido da própria história. Isso se materializava, na sua admirada Itália, na gloriosa Grécia, por exemplo, pela presença de… ruínas. Então ele mandou construir… uma ruína! Lá está ela, impávida, diante do nosso olhar, a lembrar a força dessas idéias pré-românticas, das quais nós somos filhos.

Sim, porque o Brasil romântico nasceria, tempos depois, em parte, por causa dessa admiração pré-romântica, na Europa, pelas ruínas e os tempos que não voltam mais (como o Luar do Sertão, por exemplo…).

Mas paremos por aqui. É tempo de voltarmos e prosaicamente tomarmos o metrô de volta a Berlim. Como prêmio de consolação, ofereço à ou ao acompanhante um jantar tipicamente alemão, e não num dos restaurantes turísticos (que, falemos baixinho, só aqui entre nós, costumam ser horríveis, do preço à qualidade da comida), mas num autêntico, simples, acolhedor e… cheio de pratos com batatas! Até lá.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Crônicas de Berlim (4): O rei das batatas e das ruínas

  1. Muito curioso este personagem histórico, Flávio, que, inventando o passado, garantiu a vida presente… plantando batatas!
    Então, viva o rei!
    Saudações reais
    Suely Farah

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  2. Guerly Franzen Reckziegel Castilhos // 06/06/2019 às 3:20 pm // Responder

    Adorei teu texto!
    Pesquisando para viagem a Berlin em set/2019 e já sei que não podemos deixar de ir a Potsdam.

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