Crônicas de Berlim (3)

Por Flávio Aguiar.

Na última crônica fiz referência ao movimento que levou ao atentado contra Hitler, em 20 de julho de 1944, através de uma bomba colocada pelo Coronel Carl Schenk Graf (Conde) von Stauffenberg em seu bunker na frente oriental, numa cidade hoje pertencente à Polônia.

A bomba explodiu e matou 4 pessoas, mas não o Führer que, com fúria, voltou-se contra os conspiradores.A grandemaioria deles foi julgada e condenada à morte, enquanto a Segunda Guerra terminava e com ela o Terceiro Reich e a Alemanha de então, reduzida a escombros. Stauffenberg foi fuzilado, com outros oficiais, na madrugada de 21 de julho, pelo comandante do quartel, em Berlim, onde estava preso. Na verdade esse comandante era um dos conspiradores, e fuzilou o Conde e os outros na tentativa de “apagar arquivos”, inutilmente. Foi denunciado por uma lista dos nomes dos futuros governantes da Alemanha, depois do desejado desaparecimento do Führer, descoberta entre seus papéis. Foi então julgado e enforcado um mês e meio antes do fim da guerra.

Pois hoje convido nossa ou nosso visitante para conhecermos um pouco mais dessa conspiração. Como o dia está cinzento e chuvoso, nesta primavera berlinense mais instável que bolsa de valores, convido a nos assentarmos aqui em meu gabinete/sala de estar, e a visitarmos esse pedaço da história alemã através de um livro.

Trata-se de um livro que venho tentando convencer editoras brasileiras a traduzir e publicar, inclusive essa nossa querida e valorosa Boitempo Editorial. É um livro extraordinário, um dos depoimentos mais ricos e originais sobre a Segunda Guerra. Chama-se no original em inglês Berlin Diaries: 1940 – 1945. (New York: Random/Vintage, 1988). Bom, é um livro complicado. Ele foi escrito por uma princesa russa, Marie Vassiltchikov, nascida no ano da Grande Revolução (1917) e morta em 1978, nos Estados Unidos. Sua família fugiu dos soviéticos para a Lituânia, e, em 1940, diante do pacto entre Hitler e Stalin e da iminência da invasão da região pelo Exército Vermelho, seu pai decidiu refugiar-se… na Alemanha nazista. Nada muito simpático, não é verdade? Entretanto Marie era uma pessoa de idéias próprias e muito independente, e acabou lutando para manter-se na Alemanha de Hitler e durante a guerra. Sua principal qualidade (facilidade) era ser poliglota. Por isso acabou conseguindo um emprego no Ministério de Relações de Exteriores do regime nazista.

Causa espécie, hoje ler sua lamentação pelo desaparecimento da aristocracia europeia durante a Segunda Guerra. Mas entendamos: era seu mundo, sua infância, seu pai, sua mãe. E aproveitemos a lição. Ela está mais do que certa. Afinal a aristocracia europeia de hoje (falemos só entre nós) tem mais a ver com Hollywood e Walt Disney, ou com as revistas de fofocas sociais, êpa, quero dizer, reais, do que com a tradição altiva e ao mesmo tempo autoritária das antigas linhagens. Inclusive a Royal Family de Londres, que me desculpem!

Mas seu depoimento é sincero, detalhado e valiosíssimo. Vem acompanhado por notas elucidativas, explicando detalhes de época e cobrindo lacunas, feitas por seu irmão, George V., que acabou indo residir em Paris durante a guerra e tornou-se membro da Resistência Francesa. Atuou também como tradutor no Julgamento de Nuremberg. Marie escrevia seu diário em inglês, e numa estenografia muito particular, além de em código. E os escondeuem lugares dispersos. Nemtodos foram recuperados depois. Daí a necessidade de seu irmão, que coordenou a edição póstuma, cobrir as lacunas temporais e esclarecer dados sobre nomes, lugares, circunstâncias e fotos.

O chefe da princesa Marie no Ministério era Adam von Trott zu Solz, um homem por quem fica evidente que ela nutria uma “admiração afetuosa” muito profunda, e que era mútua. E Adam, ele também um membro da aristocracia alemã, como seu nome indica, foi um dos principais líderes civis da conspiração.

Mas antes de tocarmos nesse assunto, lembremos um outro: grande parte do livro narra como era a vida na Berlim hitlerista – e sob o contínuo e arrasador bombardeio aéreo dos aliados. O que lemos ali são notícias de uma vida de “sangue, suor e lágrimas”, coberta pelo fogo dos incêndios devastadores. Mas era uma vida paradoxal. Faltava cerveja, que era caríssima, porque a infra-estrutura alemã estava sendo arrasada, em todos os sentidos. O povo passava fome, frio e convivia com um cenário de cemitério a céu aberto.  Mas abundava champanhe: a França ocupada, mas não devastada, a fornecia sem parar… através do verdadeiro saque promovido pelos invasores triunfantes. E era relativamente barata, portanto.

Chegando à conspiração conhecida como a de “20 de julho de1944”– dia do atentado. Marie V. descreve como ela se armou detalhadamente – a partir do ponto de vista de seu chefe, Adam. Vamos tomando conhecimento de como a notícia de que a conspiração existia chegou até ele, e pelo visto ele confiava muito nela. Vemos a preocupação dos líderes civis com o fato de que a fonte originária da conspiração era a liderança militar, de que Stauffenberg era apenas a ponta do iceberg.

Nos relatos vemos que a aristocracia alemã jamais engoliu Hitler, embora o tivesse na boca como uma mezinha anti-comunista necessária. Por quê? Não foi pelos desmandos autoritários ou pelas atrocidades étnicas e outras de Hitler. Foi por seu lado “populista” (escrevo assim entre aspas porque isso na Europa quer dizer uma coisa e na América Latina outra, e a confusão entre os dois significados e o mesmo significante tem levado a maiores confusões ainda), além dele estar acompanhado por uma série de “parvenus” – “recém chegados” – na cena política, que essa aristocracia não conseguia suportar.

Além de que lá por 1944 já era claro que a Alemanha perderia a guerra. E o temor era de que perdesse para os soviéticos – mais do que para os aliados. A conspiração queria recompor aquilo que Stauffenberg expressou com suas últimas palavras antes de ser fuzilado, gritando, boca contra o muro, porque ele estava de costas para o pelotão: “Longa vida à sagrada Alemanha! – Es lebt heilige Deutschland!”). Curiosamente, o atentado falhou porque Stauffenberg só tinha uma mão, com a outra perdida numa batalha.  Na casa do Conde Gottfried von Bismark, descendente do grande Otto von Bismark, fundador do Império Alemão, em Potsdam, cidade vizinha a Berlim, foram confeccionadas duas bombas para o atentado. Quem deveria levá-las era outra pessoa.

Na hora H, a tarefa coube ao maneta Stauffenberg, que só pode levar uma pasta, uma bomba. Deu no que deu. Ele colocou-a junto a Hitler, sob a mesa. E se retirou. Um outro oficial, também parte da conspiração (!), mas que não sabia que o atentado seria cometido ali (!), afastou com o pé a pasta. Resultado: ele morreu, com mais três. Hitler não.

Isso nos leva à consideração, a partir da minuciosa narrativa da princesa, de que os aristocratas envolvidos na conspiração não tinham plano B. Achavam que tudo daria absolutamente certo. Tanto que, quando não deu, não fugiram. Não tinham para onde. Nem pensaram nisso. Em parte, isso é uma metáfora do que acontecia: seu mundo acabava, de fato não tinham para onde fugir. Mas do ponto de vista prático, havia uma forte razão: se fugissem, suas famílias pagariamem seu lugar. Avida deles e seu sofrimento eram o preço de se pouparem os outros – coisa de que outras vítimas do nazismo não desfrutaram. Seria isso um privilégio aristocrático?

É difícil falar de privilégios nesta questão. Na seqüência, houve uma perseguição implacável, na qual Hitler exterminou – e naquelas circunstâncias (!) de desestruturação de seu exército – uma parte da fina flor de seu exército, com agravantes. Muitos foram enforcados com cordas de piano (!!) para que o sofrimento durasse mais, porque as cordas grossas quebravam o pescoço, interrompendo o sacrifício.

A princesa escapou para Viena. Lá encontraria seu príncipe encantado (ou desencantado?). Um simpático oficial norte-americano, com quem casou. Ao final do volume, ver a foto do casal é um alívio. Ela com aquele olhar desiludido, mas de que “o sofrimento chegou ao fim”. E ele com aquele olhar pimpão de “ói eu aqui na foto, casado com uma princesa russa!”.

Parece que foram felizes para sempre, enquanto isso durou.

Para encerrar, vamos aproveitar que estamos próximos do fim de semana, e tomar um “Sekt” (diz-se Zékt) ou espumante alemão, em honra da princesa, já que a tarde vai acabando e a chuva continua: um “Fürst von Metternich”. Tomar Sekt ou Champagne é quase uma mania – uma idiossincrasia – alemã. Algumas das pessoas tomam Sekt pela refeição inteira, o que, sinceramente, me faz lançar bolinhas pelas orelhas. Mas um pouco de Metternich é muito gostoso.

O outro Sekt alemão muito famoso é o Rotkäpchen, que pode ser traduzido por “Chapeuzinho Vermelho”. Era da Alemanha Oriental, e sobreviveu à débâcle comunista, adaptando-se aos novos tempos capitalistas. Mas deixemos este para uma outra ocasião. A princesa acharia de mau gosto.

Saúde!

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

5 comentários em Crônicas de Berlim (3)

  1. À princesa, do livro de Wallace Stevens, Opus Posthumous:

    “Diante de uma realidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação.”

    À você, Flávio:

    “Toda a infelicidade do homem decorre de uma só coisa: ser incapaz de ficar sossegado no seu quarto.” (Pascal)

    Grata pela informação sobre o livro, que passo, a partir de agora, também a esperar vê-lo traduzido por aqui.

    Saúde!

    Elise

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  2. Muito bom e interessante o artigo e a parte histórica do livro.Vai dar um bom filme. Seus comentários sobre a aristocracia alemã-russa são precisos. A característica básica da nobreza de qualquer país (até hoje!!!) é o absoluto desprezo por qualquer ser humano que não pertença às suas fileiras. Desprezavam Hitler e a corja que o rodeava mas o financiaram e o mantiveram no poder por seu anticomunismo feroz. A esmagadora maioria dos generais nazistas era da nobreza. Eles achavam que controlariam Hitler quando chegasse a hora, pois o viam apenas como um subalterno seu, um capataz eficiente que iria acabar com a URSS (nunca aceitaram a perda da Rússia). Matar judeus, ciganos, etc. foi apenas um desvio sem importância para eles. A nobreza européia perdeu seu status e importância após a Segunda Guerra. Porém, os Estados Unidos foram os responsáveis pelo seu renascimento das cinzas. E até contribuíram decisivamente para a recente subida ao poder de Sarkozy no país republicano por excelência, a França, ele que é um representante da nobreza polonesa!

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  3. Flavio Wolf de Aguiar // 21/05/2011 às 9:29 am // Responder

    Elise
    Agradeço o comentário e aproveito a oportunidade para eu mesmo corrigir erro que cometi no corpo do artigo: Missie (apelido de Marie V.) morreu em Londres, não nos Estados Unidos, onde nunca residiu. Obrigado, Flávio.

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    • Caro Flavio,

      Fui sua aluna na FFLCH e uma das qualidades suas como professor que sempre apreciei é a atenção autêntica com que você sempre acolheu a inquietação alheia.

      Agora passo a apreciá-lo também pela humildade e leveza, esses traços de caráter dos quais a comunidade acadêmica tanto carece.

      Fico contente por você estar aí, reportando Berlim para nós, com generosa inquietação.

      Gratas saudações

      Elise

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  4. Olá, Flávio,
    Bela resenha.
    Essa conspiração dos coronéis não foi retratada no filme ‘Operação Valquíria’ (2009)?
    Abs,
    Paula

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