Arte e política

recorte de "Auto-retrato matando George W. Bush", de Gil Vicente

Por Emir Sader.

Estando na Itália, logo depois do golpe na Argentina, quando o cone sul latino-americano era completamente dominado pelo tipo de ditadura que se irradiava do Brasil para os outros países da região, onde se instauravam regimes de terror, Jorge Luis Borges fez uma visita a Roma. A militância latino-americana se aprestou para fazer um manifesto em que condenava a Borges, alegando que “não havia separação entre o escritor e o político”.

Essa posição pecava por não compreender a autonomia relativa da arte em relação à política. Inquestionavelmente Borges é um gênio da literatura, apesar das suas posições políticas. Se prevalecesse a posição da indissolubilidade entre arte e política, as posições de Borges seriam corretas.

Há uma longa lista de escritores geniais, com posições de direita, aqui mesmo no Brasil. Só provam que são duas vertentes diferentes, a da arte e a da política. Para confirmar, não basta uma obra artística ser de esquerda, politizada, para que por isso tenha valor artístico. Ao contrário, é muito difícil uma arte que quer provar algo, fazer passar ideias, compatibilizar isso com um bom nível artístico. Não são tantos os Brechts.

Da mesma forma generalizaram-se na velha mídia o habito de que personagens que se tornaram famosos por alguma outra atividade, passar a emitir opiniões sobre tudo, às vezes até com colunas regulares na mídia. Uma vez disseram a João Saldanha – o genial cronista de futebol e grande técnico – como ele contrataria e escalaria um determinado jogador, se se tratava de um mau caráter. Ele respondeu que ele não o escolhia para casar com a sua filha, mas para fazer a ligação entre o meio de campo e o ataque, o que ele fazia magistralmente.

Não me interessa, nem perco tempo lendo a opinião de músicos, por exemplo, sobre temas que não têm nada a ver com sua capacidade de fazer música. Podem ser músicos geniais, mas não terem nada a dizer sobre outros temas. Não os faz piores músicos, mas o ser bom músico não autoriza a que tenha ideias inteligentes.

 São canais distintos, que se articulam entre si – a arte e a política –, mas com uma série de complexas mediações. É isso, esse desafio, que faz das obras de pensadores como Lukács e Sartre, entre outros, obras geniais, sobre autores, obras e seu significado social.

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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Paulicéia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo semanalmente, às quartas-feiras.

3 comentários em Arte e política

  1. Pedro Cazes // 15/05/2011 às 3:13 pm // Responder

    “Não os faz piores músicos, mas o ser bom músico não autoriza a que tenha ideias inteligentes.” E o que “autoriza” alguém a ter idéias inteligentes? Ser professor universitário? O Sr. Sader, que costuma se colocar como um espírito dialético, acaba defendendo a filosofia do “cada um no seu quadrado”, e com lampejos elitistas como o da frase acima. Muito fraco o texto.

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  2. Já ouvira dizer que “o mar da história é agitado”, mas que fluísse por dois canais distintos, nunca antes. João Donato (sinto muito, mas acho que ele é músico) dizia que “todo mar é um”. Fico com ele, então, mas agradeço a novidade.

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  3. ney ferraz paiva // 17/05/2011 às 5:18 pm // Responder

    borges, aqui, escapa a sader sem precisar utilizar suas genias rotas de fuga. temos os nossos próprios “neutros”, eu mesmo vez por outra me pego a indicar drummond a esse cadafalso – a verdade é que cabe a cada artista saber onde enfiar o que lhe resta da cabeça. outro dia morreu sábato – pelo que fez e escreveu não há como precisar nenhuma defasagem entre ele e borges ou outro qualquer grande escritor latinoamericano. da europa podemos citar thomas bernhard. e para seguir o inventário: otcavio paz – pelo menos ele – não seria o híbrido de poeta e pensador, a que o senhor sader, aqui, procura apartar?

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