Jirau: o avesso do milagre
Por Ruy Braga.
“Fazendo o milagre” é o título de um notável livro do sociólogo inglês, John Humphrey, dedicado ao grupo operário metalúrgico do cinturão industrial do ABCD. No próximo ano, completará 30 anos de sua publicação original. Peleando contra as interpretações que afirmavam que a classe trabalhadora dos setores “modernos” da indústria paulistana – química e automobilística, sobretudo – evoluía rapidamente para uma “aristocracia operária”, Humphrey demonstrou, no calor dos acontecimentos, porque diabos um operariado “satisfeito” – como se imaginava na época – rebelava-se contra o arrocho salarial e o sistema despótico fabril e, ao fazê-lo, se via obrigado a enfrentar, naquele histórico ciclo de greves ocorrido entre 1978 e 1980 no ABCD, todo o regime ditatorial.
Com riqueza de detalhes e uma pesquisa de campo de vários anos, Humphrey somou seu esforço a outras (poucas) pesquisas críticas e reflexivas sobre o mesmo grupo – Celso Frederico, entre 1969 e 1971, e Luiz Rainho, entre 1975 e 1977, para ficarmos nos mais importantes – para, inspirado pela então recente publicação do livro de Harry Braverman, Trabalho e capital monopolista, além do grupo de estudos sobre o processo de trabalho de Brighton, examinar o avesso do milagre econômico da ditadura: o aprofundamento da carestia, a rotatividade da força de trabalho, os maus-tratos sofridos pelos operários, os ritmos infernais da produção e o aumento dos acidentes de trabalho.
Se a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, tendo Lula da Silva à frente, mostrou-se então bastante afinada com as principais demandas dos operários do ABCD, organizando-os e liderando-os como uma autêntica vanguarda operária, a verdade é que, se não fosse por aquela rebelião de trabalhadores, não existiriam nem o PT e nem a CUT. Protagonizado por um grupo formado pela aliança entre alguns poucos operários qualificados mais estáveis e uma massa radicalizada de subproletários não-qualificados e semiqualificados, aquela onda logrou, surpreendendo sua própria liderança sindical, dissolver a invisibilidade da periferia metropolitana e trazer para o centro da pauta política nacional os “peões” em sua interminável coleção de dissabores cotidianos.
“Milagre” é uma palavra que também vem sendo bastante usada para se referir àquele que simbolizou, durante o final dos anos 1970, o avesso do milagre do crescimento econômico da ditadura, ou seja, o próprio Lula da Silva. Nordestino miserável, migrante que se tornou operário e se consagrou como a mais importante liderança política da história brasileira. Um suposto “milagreiro” que soube aparentemente conduzir a sociedade brasileira para longe da pior crise capitalista desde 1929, alavancando milhões de brasileiros para o mercado de consumo por meio da combinação entre Bolsa Família, aumentos do salário mínimo acima da inflação e crédito consignado. Um líder carismático que conseguiu o milagre de eleger uma ilustre desconhecida para o posto mais elevado do Estado. Um Estado que, por sua vez, coordena um modelo de desenvolvimento capitalista semiperiférico capaz de, miraculosamente, garantir concomitantemente lucros inéditos – na história capitalista mundial! – para os bancos brasileiros e desconcentrar renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho. Só mesmo uma boa dose de crença no poder do divino pra entender o atual momento hegemônico. Acontece que, não sendo religioso, desconfio permanentemente dos milagres.
Na realidade, o avesso do atual modelo de desenvolvimento não pode ser percebido por meio do aumento do consumo – e do endividamento – popular. Para tanto, precisamos arriscar um olhar para outro lado… De acordo com o “Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho” do Ministério da Previdência Social, o número de acidentes de trabalho no Brasil quase dobrou entre 2003 – primeiro ano do governo Lula – e 2008, saltando de 399.000 para 747.000. Isso em um país onde os acidentes de trabalho são notoriamente subnotificados: muito provavelmente, estamos falando em algo em torno de 2 milhões acidentados para o ano de 2008. Mesmo se levarmos em consideração o aumento do número total (formais e não formais) de ocupados para esse mesmo período, de 80 milhões (2003) para 92 milhões de indivíduos (2008), ainda assim, o ritmo de crescimento do número de acidentes de trabalho é muito superior ao crescimento dos ocupados.
Não é difícil intuir que sob a hegemonia lulista as coisas não andam nada boas para o mundo do trabalho. Supresa? Em março passado, uma onda de paralisações, greves e rebeliões operárias espalhou-se pela indústria da construção civil, atingindo algumas das principais obras do PAC: 22 mil trabalhadores parados na Hidrelétrica de Jirau em Rondônia; 16 mil na Hidrelétrica de Santo Antônio; alguns milhares na Hidrelétrica de São Domingos no Mato Grosso do Sul; 80 mil trabalhadores grevistas em diferentes frentes de trabalho na Bahia e Ceará; dezenas de milhares no Complexo Petroquímico de Suape em Pernambuco, e por aí vai… Tudo somado, o DIEESE calculou em 170 mil o número de trabalhadores que, somente em março, cruzaram os braços. Nas pautas operárias, encontramos invariavelmente demandas por reajuste dos salários, adicional de periculosidade, equiparação salarial para as mesmas funções, direito de voltar para as regiões de origem a cada 90 dias, fim dos maus-tratos, melhoria de segurança, da estrutura sanitária e da alimentação nos alojamentos… Ou seja, demandas que nos remetem ao velho sistema despótico fabril, agora revigorado pelas terceirizações e pelas subcontratações.
Estariam os “peões” retornando ao palco para dissolver a invisibilidade da periferia capitalista brasileira, trazendo para o centro da pauta política nacional o necessário debate a respeito do avesso do atual modelo de desenvolvimento econômico? Só o tempo dirá. Contudo, uma coisa é certa. Ao contrário do que aconteceu em 1978, a peãozada de 2011 encontrou a burocracia sindical lulista do avesso. Senão, como explicar o silêncio da CUT após a empreiteira Camargo Corrêa anunciar a demissão de 4.000 trabalhadores em Jirau, poucas horas depois de um acordo coletivo com a mesma empresa ter sido celebrado pela central? Obviamente, não se trata de um súbito ataque de inexperiência cutista à mesa de negociação. E o problema também não se esgota no financiamento das campanhas eleitorais petistas pelas grandes empreiteiras. Na realidade, este episódio nos ajuda a refletir sobre o avesso do milagre lulista.
Afinal, a iminência de grandes eventos como a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas do Rio, em 2016, aumenta exponencialmente a demanda por investimentos em infra-estrutura que, por sua vez, dependem fundamentalmente dos recursos do BNDES (leia-se, do Fundo de Amparo ao Trabalhador) e dos fundos salariais pra se viabilizarem. Aqueles mesmos fundos que são controlados pela burocracia sindical cutista. Desde que não ocorram mais atrasos nas obras, o que implica, naturalmente, a “pacificação” dos canteiros (Guarda Nacional…) e a supressão de movimentos grevistas (CUT, Força Sindical…), trata-se de lucro líquido e certo para o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, a Previ, da Petrobras, a Petros, da Caixa Econômica Federal, a Funcef… Ainda que às custas de demissões, dos baixos salários e da crescente degradação das condições de trabalho e de segurança. Sem mencionar os custos ambientais. Ao fim e ao cabo, talvez o avesso do milagre lulista seja este: transformar uma geração de sindicalistas “autênticos” em autênticos capitalistas selvagens. Desses “à moda antiga”, como chegou a lembrar o próprio Ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, referindo-se às condições de trabalho em Jirau…
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaiosInfoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) eHegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas-feiras.
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