O último Geraldo Vandré

Por Urariano Mota.

Texto publicado originalmente no Vermelho.

Quando vi a entrevista de Vandré na Globo News, fiquei dias ruminando. Na verdade, ainda me encontro assim. Talvez nem fosse a hora de regurgitar palavras, mas a urgência obriga.  Em lugar do complexo “metida tenho a mão na consciência, e não falo se não verdades que me ensinou a viva experiência”, dos versos lapidares de Camões, procuro um nível mais baixo, que ainda assim está acima da minha altura. Tenho que ser justo, sensato e solidário em um só movimento. Mas como e onde a justa medida?

Enquanto escrevo, ouço uma canção íntima, que ouvíamos na década de 70 como uma senha:

“Eu vou levando a minha vida enfim

Cantando e canto sim

E não cantava se não fosse assim

Levando pra quem me ouvir

Certezas e esperanças pra trocar

Por dores e tristezas que bem sei

Um dia ainda vão findar…”

E vêm outras vozes, cantando na gente, na mesma canção:

“Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção

Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”

Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta?  A ruminação continua, mas é imperioso avançar.

Já antes da entrevista, na Globo News, eu esperava o tom sensacionalista, como é comum nos trabalhos de Geneton Moraes Neto. Aquilo anunciado,

Geraldo Vandré quebra o silêncio em entrevista exclusiva

O Dossiê Globo News exibe neste sábado (25) uma entrevista histórica. Depois de quatro décadas de isolamento, o cantor e compositor que se transformou em um dos maiores enigmas da MPB resolve finalmente quebrar o silêncio, em entrevista exclusiva à Globo News. Autor de clássicos como Disparada e Pra Não Dizer que Falei das Flores, esta transformada em hino de manifestações contra a ditadura militar – Geraldo Vandré deu uma entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto no dia em que completava 75 anos de idade. Desde que voltou do exílio, no segundo semestre de 1973, ele não falava para a TV. Não perca o Dossiê Globo News, neste sábado (25), às 21h05”

Essas trombetas, eu sabia, não teriam um espetáculo conforme o anunciado. Mas estava escrito, não havia opção, tinha que ver Vandré. Resistia ainda uma esperança de que ele sobrevivesse à montagem e às perguntas desarrazoadas. E começa a entrevista, e vemos: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo é que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia, há nele uma certa memória, montada, espertamente montada, como toda memória, mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos e precisos que jogam fora a violência do regime militar.

E ocorre então a primeira ressalva, ao entrevistador, que só percebemos depois que o programa se fecha. Ocorre com Geneton o que é comum em 99% dos repórteres em ação na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, conheceram pessoas, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.

Mas pesquisar é bom, informar-se é melhor, aprender, pôr-se em posição humilde, atenta e curiosa com os que viveram poderia e pode ser um  modo de driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista até parece que Vandré é autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, até parece. Poderia ser dito, essas são as “obras-primas” de Vandré. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado, antimilitar na ditadura. Se o entrevistador houvesse ido além das duas obras-primas, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, que era direta como um soco:

“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora….”.

Mas isso fica oculto das pessoas que veem o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse  também uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil  tem antes da realidade mesma. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré como um  homem que sobreviveu à velha esquerda e hoje dá vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.

Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:

“…Foi em torno de 74, quando eu fazia residência  no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70…”

Regurgito para encerrar: Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se vê é um homem ainda em estado de terror,em plena democracia. Nela, ele nos lembra os elefantes amestrados, torturados,  que levantam a pata para o  público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído.  Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas canções, ele não foi derrotado.

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

10 comentários em O último Geraldo Vandré

  1. Muito bonito, urariano.

    abraços do seu amigo!

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  2. Ainda que ele não fale das flores, o rubro de suas cores ficaram plasmadas em nosso inconsciente… Porta voz das dores, clamores e censores de uma época negra de nossa história, mais que isso, Vandré é um símbolo vivo de nossa resistência, nossa decência, nosso quinhão de esperança de dias melhores, que a duras penas vieram… Grande artigo, Urariano! Simples e comovente, como a tradução de seus sinceros regurgitamentos …

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  3. Urariano, amigo
    Acabei de ler seu artigo sobre Vandré no Blog da Boitempo.
    Quando estiver melhor da perturbação, talvez lhe escreva de novo, em outro momento, com alguma clareza possível, não sei.
    No momento, estou apenas perplexa, enojada e muito, muito triste.
    Há tanto o que dizer sobre essa indignidade, perfídia, com a memória do nosso Vandré.
    Não sei meu amigo em que mundo estou que não vi essa matéria, nem dela tinha ouvido falar.
    Só tenho agora um mote em mente, recordando a canção:
    “A certeza na frente, a história na mão”.
    São tantas tenebrosas confusões e tanta desestória ao chão…
    Lembro-me também, sem parar, do seminário de Direitos Humanos, com Prof. Paulo Freire, Fábio Konder Comparato e tantos mais, aqui em São Paulo, cujo início coincidiu com o golpe de Collor na economia.
    O Prof. Paulo Freire e eu estávamos conversando sobre uma possível proposta dele de uma “pedagogia da dignidade” quando a notícia chegou como uma bomba no meio do seminário.
    Uma grande e legítima e esclarecedora pedagogia da dignidade é preciso, mais do que nunca.
    Posso ter errado em muita coisa nessa vida, mas nunca errei de amigo.
    Obrigada, amigo, pela matéria.
    Deu-me tanto que sofrer mais uma vez, mas também tanto que pensar, pensar, pensar…
    Uma vez um amigo querido me disse algo que era mais ou menos assim: que hoje nós vivemos a angústia de estar entre mentiras convincentes e verdades sem nenhuma verossimilhança.
    Será um beco sem saída?
    Tanta vivência e memória e testemunhos não contam uma verdade?
    E se contam, que força podem ter de endireitar esses caminhos tortos e vilipendiados que a grande mídia veicula de maneira tão sinistra como parte do plano perverso de desmentir o real vivido.
    Não estou bem e nem sei direito o que vou dizendo aqui, mas saiba apenas que não quis deixar de dizer que li o que você escreveu e que agradeço pelo que assinalou.
    Um abraço consternado
    Suely

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  4. izaias almada // 04/05/2011 às 7:16 pm // Responder

    Parabéns Urariano,
    é preciso, antes de tudo, sensibilidade para escrever o que você escreveu. Geraldo Vandré, não importa hoje o que passou, merece o respeito dos brasileiros. Nunca se sabe o quanto a tortura provoca numa pessoa sensível como ele.
    O atual jornalismo – e não só – não entende, como você diz, nada x nada de ditadura.O caso se repete agora na teledramaturgia.
    Basta ver essa novela que acaba de estrear no SBT, com o ambígua título de “Amor e Revolução”.
    Com todo respeito a alguns dos depoentes dos finais de capítulos, o qie é apresentado é um acinte à memória de homens como Marighella, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Lamarca, Eduardo Leite, Heleny Guariba, Iara Yavelberg e tantos outros brasileiros que foram assassinados nos anos terríveis da ditadura civil/militar de 64/68.
    E ainda dizem que aquilo esclarece às novas gerações o que se passou no Brasil. Haja!
    Um cordial abraço,
    Izaías Almada

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  5. Gustavo Tenório // 07/05/2011 às 9:07 pm // Responder

    Fiquei transtornado com a entrevista.
    Gostei muito do texto. Deu-me outra visão.

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  6. Muito esclarecedor o seu artigo. Descobri Vandré quando comecei a tomar consciência política, ainda muito jovem, e de que houvera uma ditadura no Brasil.

    Acredito que a sua arte é muito maior, do que fizeram com a pessoa de Vandré,continuo admirando esse grande compositor da nossa MPB.

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  7. Juca de Trindade // 11/09/2011 às 6:33 am // Responder

    Mas que mania de dizer que o Vandré foi torturado!!! Os milicos a as secretas não encostaram um dedo nele, porra!!! As judiarias ficaram para outros, não pra Vandré! E já foi mais do que debatido e decantado que ele sofre de uma forma moderada de TOC, que lhe provoca essas “aparentes” confusões e contradições, bem como o isolamento. Nada a ver com maus-tratos ou torturas. É algo que acomete milhões e milhões de pessoas por aí (inclusive suspeita-se que João Gilberto seria outro). Que saco!! Deixem o cara em paz com a sua história e com as suas escolhas.Ele é o que é e nunca se vinculou a grupo nenhum. Cantava as mazelas sociais sem perfilhação, somente com a sua alma nordestina e o atavismo decorrente.
    Só..

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    • Tainá Alves // 30/05/2012 às 12:50 am // Responder

      Olho só eu não sei quem é vc, mas antes de falar se informe!!! Vandré não sofre de TOC, ele pagou muito caro por idealismo, por favor respeite as pessoas!!!

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  8. Urariano,

    Conheci a obra de Vandré aos 10 anos de idade, em 1978. Até hoje me emociono com as suas músicas. Dizia ele: “Ninguém há de me calar! De fato, ninguém pode destruir o compositor Vandré. Diferentemente de Jorge Amado e Gabeira, ele não é um esquerdista arrependido. A antrevista confirmou apenas o que todos sabiam, ele ainda tem medo dos militares! Não é só Vandré que tem esse medo! Outras pessoas que passaram pelos porões ainda não se recuperaram! Quem sabe um dia chegue alguém e anuncie para Vandré que não há mais quarta-feira! Parabéns.

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  9. Era um poeta que fazia música…. Uma das mais lindas músicas reflexivas da nossa realidade… Não sei o que fizeram, mas…

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