Do Diário de Berlim: Fumaças da primavera

Fotografia tirada por Flávio Aguiar

Por Flávio Aguiar.

O fim de semana que passou foi o primeiro da nova primavera em Berlim.

Sábados e domingos cálidos, ensolarados, com aquele frio matinal que vai perdendo as forças, ao mesmo tempo em que o calorzinho do final da manhã entra mais vigoroso pela tarde adentro.

As pessoas vão entrando em frenesi; algumas começam a tirar as roupas. Aparecem aqueles membros ainda pálidos de espanto hibernal. As mais ousadas vão se despindo mais e mais. Em alguns lugares – nesta época ainda remotos – chegam ao (des)limite da nudez parcial ou total, e daí ao mergulho n’água ainda gelada de lagos e canais é só um pulo. Quando mais não seja, mergulham-se os pés, e o frio que sobe gela o corpo, mas aquece a alma, enquanto o sol faz o resto.

Um dos espaços mais prazerosos para se passear nesse estado de alma primaveril é o Tiergarten, enorme parque encravado no meio da cidade, um Ibirapuera inteiro para uma cidade cuja população mal chega – se chega – a um terço daquela de São Paulo.

O Tiergarten – literalmente, tanto quanto isso é possível – o “Jardim dos Animais Silvestres”, era a antiga floresta de caça dos reis da Prússia. Ao fim da Segunda Guerra, quando já fazia tempo que era parque público, não restara ali uma única árvore de pé. Todas foram abatidas pela população sobrevivente para se aquecer na cidade destroçada pelos bombardeios, pela luta corpo a corpo, e também pela atrocidade nazista.

Hoje, novamente milhares – zilhares – de árvores e arbustos preenchem o espaço com seus botões e brotos que se arriscam a pular para o ar, agora já quente, no meio tarde, mas sempre instável, como é o mês de abril em Berlim.

Por entre as árvores, algumas – vanguarda admirável – floradamente enlouquecidas, se esgueira a multidão. Esgueira-se? Mais ou menos. Um grande número se assenta. E um grande número desse grande número o faz com total pompa e completa circunstância. São as famílias turcas e seus descendentes. Sempre numerosas, elas trazem para o parque suas churrasqueiras de metal, suas quase pipas de chás, os engradados de refrigerante e o bulício das crianças. Ali fazem, pela tarde afora até o subir da noite pelas luminárias que começam a dar sinal de vida, seus churrascos entremeados por saladas e aromas capazes de despertar as melhores invejas.

E que quadro animador é ver essa convivência que, no domingo também propenso às modorras caseiras, se espraia pelo parque, por outros parques, pela cidade num clima de festa e tolerância, ao invés de desconfiança e malquerenças furtivas ou não. Dá ânimo ver isso na terra que já foi palco para a alma mater da intolerância, onde se queimavam livros como se queimavam sonhos.

Claro que sempre há os divergentes. Todos os anos a extrema-direita, através de seus porta-vozes, se insurge contra esse festival do encontro despido de conflitos, tentando proibir os churrascos da alteridade. Ou querendo promove-los de outras formas, através dos progroms da proibição, ainda que desta vez simbólicos. Na falta de outros argumentos, alegam que o fumacê nos parques prejudica as árvores, o bem estar, o meio ambiente, a paisagem, o que seja. Mas fica claro que essas fumaças das primaveras e dos verões incomodam, na verdade, os olhares avermelhados da nostalgia da intolerância auto-satisfeita e imperativa.

Uma ou outra vez proibiu-se o churrasqueio no Tiergarten. Mas dava para entender: por exemplo, durante a recente Copa do Mundo, em 2010. Algum tipo de conflito seria inevitável entre as famílias em torno de seus braseiros e as multidões de torcedores esbraseados pela torcida e pelo álcool, cada um com seu cada qual de direitos à manifestação.

Passada a Copa, a estação de direito voltou às fumaças que saúdam o fim do inverno e o advento da primavera. Felizmente.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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