A luta como lema, como forma de enfrentar o mundo
Há exatos 10 anos, no dia 12 de agosto de 2000, morria vitimado por um enfarto o advogado José Roberto Rezende. Militante da luta armada contra a ditadura militar brasileira, Rezende foi procurador da Prefeitura de Belo Horizonte e ocupava a Ouvidoria de Polícia de Minas Gerais. Publicou pela Boitempo o livro Ousar lutar, escrito conjuntamente com Mouzar Benedito, no qual relata sua história de combate à ditadura e o período em que esteve preso.
Concebido inicialmente como um projeto que contaria diversos relatos de presos políticos, o livro se converteu num depoimento pessoal de Rezende. Escrito de forma leve e dinâmica por Mouzar Benedito, o projeto tem como objetivo, segundo Rezende, “contar as coisas que vivi e presenciei, porque, simplesmente, não desejo que essa memória se apague”: “eu quis, por meio deste depoimento, deixar também aos meus filhos uma história de amizade, esperança, dignidade e coregem. Pretendi que este livro fosse um relato de vida, e não de morte”, aponta na introdução.
Confira abaixo um trecho de Ousar lutar:
“Um dia abro o jornal e vejo a foto de um fusca queimado, apresentado pela repressão aos jornalistas como prova do resgate do ex-deputado Rubens Paiva por grupos de esquerda. A informação era que Rubens Paiva estava sendo levado de um presídio a outro quando a viatura foi cercada por “terroristas”. Ele teria sido resgatado depois de um enorme tiroteio em que um dos carros dos guerrilheiros acabou se incendiando. Os jornalistas acreditaram: a prova estava ali, o fusca queimado. Só que tudo não passou de uma farsa. Jamais apareceu alguém da esquerda para assumir a autoria desse fantasioso resgate. Rubens Paiva, isso sim, já havia sido morto na tortura, nas dependências do DOI-Codi. Uma pergunta permanece sem resposta: quem matou Rubens Paiva e onde está seu corpo? E aquele carro queimado… bem, ele tinha muita história.
Os carros que usávamos nas ações eram quase sempre expropriados por um curto período de tempo. Como diriam os mais técnicos, eram objeto de “furto ou roubo de uso”. Geralmente, íamos a um lugar em que casais paravam para namorar dentro do carro, tomávamos o veículo “emprestado” para uma determinada ação e depois de realizá-la não valia a pena continuar com o carro, já perigoso para nós. Então, pelos documentos, descobríamos o nome e o endereço do proprietário e, a partir daí, seu telefone, e ligávamos informando onde estava o carro. (…)
Muitos ficavam agradecidos, não só por devolvermos o carro como também por termos consertado alguma coisa nele. Várias vezes tomávamos um veículo que tinha problema no carburador, no freio ou qualquer outra coisa, e tínhamos que consertá-lo, pois num sequestro ou expropriação de banco, por exemplo, ele não podia falhar. (…)
Mas precisávamos de um carro com documentação em ordem e tudo mais, que pudéssemos usar normalmente, sem correr riscos, e compramos o fusca em nome do Ângelo, um dos mais jovens militantes do nosso grupo. Era um carro com fachada legal, usado no quotidiano, e acabamos tendo quase que “um caso de amor” com ele. Batizado com o nome de Natália, o fusca se tornou quase um de nós. A “companheira” Natália participou de muitas ações também, mas como apoio, sem o risco de ser identificada.
Para a soltura do embaixador alemão, precisamos usar a Natália, por falta de outro veículo. Estava previsto o uso da kombi, mas acabou não dando e tivemos que usar o carro que estava à mão. Depois do embaixador solto, ficamos preocupados: e se ele tivesse guardado na memória a placa do carro? Podiam chegar ao Ângelo. Aliás, a repressão esperava justamente por isso: que o embaixador colaborasse, passando detalhes que pudessem levar aos sequestradores. Ela havia montado um mega-esquema para partir pra cima da gente assim que os exilados trocados pelo embaixador chegassem ao seu destino. (…)
O que fazer com a Natália? Deixar perto de uma favela com chave no contato, para ser roubada? Pôr fogo? Depois de muita discussão, concluímos que o mais seguro seria queimá-la. (…) Parecia cena de filme. Ficamos alguns segundos olhando aquela cena. Foi triste o fim da Natália. Na volta para casa, estávamos todos tristes. A Natália era um objeto que fazia parte da vida da gente, nos salvou de muitas situações difíceis… e de repente a gente mata a Natália! Fiquei me lembrando das ações em que a usamos, como a expropriação de dinheiro numa loja de produtos naturais e numa casa de câmbio, na fase mais difícil do nosso grupo, quando não tínhamos estrutura nem para expropriar dinheiro de bancos…
O ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela Ditadura
Quando mostrei para o Ângelo a foto da Natália queimada, no jornal, usada como “prova” do resgate de Rubens Paiva por um grupo de guerrilheiros, uns quinze dias depois que pusemos fogo no carro, ele levou um susto. (…)Há pouco tempo, um jornalista do Rio me telefonou em Belo Horizonte, tentando me desmentir. Disse que tinha visto o carro naquele lugar, queimado. Ora, que o carro estava lá, queimado, estava mesmo. Fomos nós que botamos fogo no fusca da foto que estava no jornal. Esse jornalista não só engoliu como avalizou toda a farsa.”
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