Em agosto Boitempo lança livro do vice-presidente boliviano Álvaro Garcia Linera

Com reconhecida trajetória militante e acadêmica, o vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, é sem dúvida um dos principais interlocutores do profundo processo de transformação em curso na Bolívia, que tem grande impacto no mapa político de toda América Latina. A Boitempo prepara para agosto o lançamento de sua obra mais recente, A potência plebéia – ação coletivo e identidades indígenas, trabalhadoras e populares na Bolívia, na qual são reunidos seis ensaios que apresentam um retrato da produção intelectual de Linera e ajudam a compreender as mutações sociopolíticas e o porvir da Bolívia no século XXI.

O IHU, Instituto Humanitas da Unisinos, publicou recentemente uma entrevista com o vice-presidente boliviano, publicada originalmente no jornal argentino Página 12 no dia 10 de abril. A entrevistadora é Mercedez Lopes San Miguel, e a tradução do Cepat. Confira abaixo o texto completo. Indicamos também entrevista concedida ao jornal italiano Rifondazione Comunista, republicada pela Carta Maior no começo do ano, e um discurso proferido por Garcia Linera em 2009 entitulado O Papel do Estado no modelo nacional produtivo.

Além de orelha de Emir Sader, a edição brasileira conta com organização e prefácio do jornalista e economista Pablo Stefanoni.  Estudioso do processo boliviano, Stefanoni publicou na Clacso um artigo sobre a trajetória do intelectual: Álvaro Garcia Linera, pensando Bolívia entre dos siglos. Clique aqui para le-lo, e confira abaixo a entrevista do Página 12.

Nas eleições do domingo passado, o Movimento ao Socialismo (MAS) ganhou, mas não avançou o quanto desejava no Oriente do país. Ao que isto se deve?

Eu diria que avançamos muito. Em 2005, o presidente Evo obteve 54% do eleitorado e nas disputas de governo chegamos a 18% e conseguimos o controle de três prefeituras. Hoje, nosso voto correspondente à disputa de governo local chegou a 53% e passamos de três para seis prefeituras. Queríamos ter avançado mais, mas vendo de forma realista triplicamos a percentagem e duplicamos o número de governos. O mesmo aconteceu nos municípios: em 2004, chegamos a 100 prefeituras de um total de 330, hoje, apenas com o MAS temos entre 240 e 250 municípios. Queríamos ter 330, quem não?, mas ampliamos a presença territorial no país, inclusive em regiões da zona do Oriente, onde tínhamos zero de presença como em Santa Cruz e agora vamos chegar próximo a 26 prefeituras.

O que aconteceu com a prefeitura de La Paz, que ficou em mãos de um ex-aliado do MAS?

Gostaríamos de ter ganho. O que acontece em eleições municipais e regionais é que entram em jogo outros elementos. Não se colocam em jogo projetos de sociedade, de Estado, nem de economia, mas sim a gestão doméstica municipal. Mais do que uma eleição de caráter político foi uma votação em torno de personalidades locais vinculadas a capacidade de gestão local. A oposição apresentou um candidato com boa experiência frente à nossa candidata que não tinha essa trajetória.

Parece evidente que foi pela ruptura com o MSM e o chamado do presidente no voto apenas no partido governante.

É provável que essa separação tenha influenciado. Mas influenciou a maior experiência, o maior conhecimento. Fizeram uma gestão interessante na prefeitura e as pessoas votaram pela continuidade. Foi uma vitória do MSM, mas como lhe disse, em momento algum esteve em jogo um projeto de sociedade, mas sim o desenvolvimento urbanístico das cidades.

Como responde às críticas de que existe um personalismo de Evo Morales e que o partido se transformou no único possível?

Em nenhum momento o MAS tem a intenção de se converter num partido único, porque inclusive, internamente é uma coalizão de múltiplos movimentos: camponeses, indígenas, associações de bairros, operários, ou seja, é a expressão da ampla diversidade classista e cultural de nossa sociedade. Temos pluralidade e estamos convencidos da importância da pluralidade política. Buscamos uma maior presença territorial para melhorar a gestão. Tivemos governadores que se dedicaram a fazer golpes de Estado e não a governar. Nós construímos um grande debate político estrutural sobre o tipo de sociedade que queremos construir, que avance a industrialização. Queremos que a modernização avance rápido, sem os obstáculos que tivemos em 2007, 2008 e 2009.

E até onde vai esse processo socialista?

São três pilares de transformação estrutural que foram definidos pela Constituição: a plurinacionalidade, o regime de autonomias e a economia social comunitária. Inauguramos uma Constituição que estabelece que nosso Estado é plurinacional, que as culturas, os idiomas e os saberes diversos da população tem igualdade e o reconhecimento no âmbito público. Este tem que se tornar prático no âmbito escolar, na publicação de textos, na aprendizagem do idioma indígena por parte dos funcionários públicos. É um processo de descolonização lingüística, cultural e conceitual.

A desconcentração do Estado é o Estado autonômico. Celebramos a eleição de governadores na qual a assembléia departamental foi eleita e não eleita a dedo. E não se trata apenas de eleger autoridades. É fazer acordos e pactos fiscais, compatibilizar funções, na Espanha estão há 30 anos melhorando esse processo. O terceiro eixo é o da economia social comunitária, de uma modernidade tridimensional, que se dá no âmbito dos recursos naturais e nos processos de industrialização acelerada. Minerais, gás, água: uso e gestão industrializada, primeira dimensão. Segundo, que as empresas pequenas vejam potencializados os seus empreendimentos e o terceiro é o comunitário. Que se faça um uso comum de recursos naturais. Potencializar, irradiar e liberar as forças comunitárias que existem nas estruturas agrárias. Na medida em que as tarefas sejam conduzam pelos movimentos sociais, pode-se chegar a um horizonte socialista pós-capitalista, como horizonte a longo prazo.

Esse processo é afetado pela crise mundial?

A Bolívia foi a economia que mais cresceu no ano passado na América Latina por dois motivos. O primeiro é a ênfase na importância do mercado interno através da ampliação da demanda – políticas sociais voltadas aos excluídos, os assalariados, os setores agrícolas, que ampliaram o consumo de bens e de serviços e isso dinamizou a economia. A metade do crescimento se deve à própria dinâmica da demanda interna. Uma parte do excedente econômico da exploração dos recursos naturais fica no país. Em 2005, a percentagem dos lucros com o gás que ficava com o Estado era de 30%, atualmente é entre 68% e 80%.

O outro tema são as reservas internacionais. Quando chegamos ao governo eram de 1,7 bilhão de dólares, hoje temos 8,5 bilhão de dólares. Tem-se uma retenção do excedente que permite, em tempos de crise, dispor de fluxos monetários que podem ser utilizados pelo Estado para dinamizar a economia tanto nas exportações como suprindo a queda de preços ou no âmbito do consumo interno. Crescemos 3,5%, se não houvesse a crise, teríamos crescido mais. Reduzimos a pobreza extrema em oito pontos em três anos.

Como percebe a região, as mudanças no Chile e eventualmente o que venha acontecer no Brasil?

É um momento excepcional para a América Latina. Há uma onda geral de des-neoliberalização de suas estruturas econômicas e políticas, umas mais radicais, outras menos. Um novo protagonismo do Estado, um fortalecimento das políticas sociais, uma busca de equilíbrio entre gestão e recursos estratégicos. É possível que em alguns países se dê um retrocesso. Isso é algo previsível. Os países não são soldados, têm ritmos diferentes, mas há um sentido coletivo, um sentido para onde tem que se ir. O fato é que cada um de nossos países busca por vias próprias abandonar o receituários neoliberal dos anos noventa.

As relações com os Estados Unidos melhoraram com a administração Obama?

Não. Lamentavelmente não. A nova gestão de Obama trouxe esperança porque acreditávamos que poderíamos dar outra direção a atitude antagonista e em muitos momentos conspirativa que a administração de Bush teve contra nós. Mas isso não aconteceu. Encontramos uma continuidade nessas políticas: segue a chantagem, continua a presença de diferente atitudes do Estado norte-americano e seus intermediários de intromissão em nosso país, recrutando dirigentes sociais, inculcando-lhes uma formação deformada do conceito de democracia e desenvolvimento, promovendo divisões no interior dos movimentos sociais, deixando de lado suas responsabilidades na luta contra o narcotráfico, fazendo com que recaiam todos os gastos em nosso país.

E em outras partes do continente os Estados Unidos aumenta a sua presença militar como as bases na Colômbia, o aumento dos efetivos no Peru, o uso de forças armada de modo desnecessário na crise haitiana. O apoio ao golpe em Honduras. Não vemos uma mudança de atitude com o continente e menos ainda com a Bolívia. Continua a atitude contenciosa e agressiva em que pese termos estendido a mão.

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