ENTREVISTA COM ÁLVARO GARCÍA LINERA
Com trajetória militante, acadêmica e institucional, Álvaro García Linera, o vice-presidente boliviano, é sem dúvida um dos principais interlocutores do profundo processo de transformação em curso na Bolívia, que tem grandes impactos no mapa político de toda América Latina. Em maio, a Boitempo lançará no Brasil sua obra A potência plebeia, que reúne uma rica seleção de cinco ensaios do sociólogo, reeleito recentemente, cumprindo um duplo objetivo: costuram um retrato da produção intelectual de Linera, ao passo que ajudam a compreender as mutações sociopolíticas e o porvir da Bolívia no século XXI.
Confira abaixo a entrevista realizada por Angela Nocioni para o jornal italiano Liberazione, de Rifondazione Comunista. Com tradução de Emir Sader.
– Você disse, na cerimônia de posse, que o horizonte estatal será o socialismo. O que isso quer dizer?
– Que toda a sociedade política tende a se diluir na sociedade civil. Isso está começando a acontecer na Bolívia. Há uma ampliação da base da tomada de decisões que tem a ver com o país. É um processo gradual e complexo, mas que está em andamento. É a idéia gramsciana do Estado integral: nós a estamos realizando. O horizonte socialista não é um tema que se decide por decreto. Na Bolívia, a questão da modernidade estatal está sendo assumida pelas classes populares e indígenas. Não era um caminho ineludível, mas avança nessa direção. Por causa da natureza social deste bloco dirigente, que pede redistribuição e igualdade, as decisões estão sendo socializadas. O que é o socialismo, senão isto? É um processo de radicalização da democracia. Não estou falando de um método de produção pos-capitalista, estou falando de uma estrutura política que se funde permanentemente com a sociedade civil.
– Como pensa evitar que tudo isso desemboque em um capitalismo de Estado, em que reina a burocracia?
– Através do exercício da hegemonia. Ao socialismo chegaremos por uma vida democrática. A própria realidade está mostrando que as classes populares e indígenas não querem suprimir o setor empresarial. Aqui se fazem acordos práticos em torno das necessidades das classes populares, promovendo por essa via a hegemonia. O exercício da hegemonia é a chave para não cair nem no capitalismo de Estado burocratizado, nem no totalitarismo, porque se baseia na capacidade de guiar material e moralmente setores sociais não populares. Quem tentou de outra forma a expropriação da empresa, deu lugar a degenerações burocráticas. Aqui estamos incorporando os setores empresariais, golpeando evidentemente os interesses dos latifundiários e dos grandes investidores externos , mas com os outros setores estamos conseguindo. O socialismo não é um novo modo de produção, mas um regime estatal e uma modalidade de redistribuição da riqueza. Não queremos estatizar. A economia boliviana é feita de uma estrutura comunitária produtiva e de investimentos produtivos privados, muitos até estrangeiros.
– Como pensa incorporar ao seu projeto a extrema direita, que é maioria em Santa Cruz? Ela também faz parte da Bolívia, lhe odeia e não está lhe oferecendo um ramo de rosas.
– O Estado já controla o núcleo econômico dessa região, mesmo se essas elites não querem admiti-lo ainda. Santa Cruz tinha três grandes fontes de poder econômico: a renda da terra vinculada a brasileiros, a peruanos e a coreanos para produzir o conjunto dos serviços da atividade petrolífera e o comércio. O Estado retomou o controle da terra e a redistribuiu. Foi alterada a estrutura da propriedade da terra em Santa Cruz. O Estado interveio junto aos pequenos produtores camponeses e tem, por exemplo, uma presença agora na cadeia produtiva da soja que vai para a exportação e o transporte. Quando chegamos controlávamos 0% da cadeia produtiva, agora 35%.
– Você está dizendo que a hegemonia passa por ai?
– É um primeiro passo. A hegemonia não é uma questão só de palavras. É preciso a base material para realizá-la. O Estado entrou na produção dos hidrocarburetos. Está modificando a estrutura do poder econômico, em aliança com os pequenos produtores. No âmbito político ideológico é a ascensão extraordinária del MAS, que passou de 25% a 41%. Em quatro anos o MAS dobrou o número de eleitores. Claro, ainda falta muito. Mas o controle dos latifundiários sobre a terra terminou. Está em processo de construção gradual um novo bloco no poder. Alguns segmentos dos setores anteriormente dominantes começam a aderir a este núcleo. A hegemonia não é irreversível. Mas estes dados mostram uma expansão, um avanço de um novo bloco no poder, mesmo no Oriente do país. Por isso Santa Cruz não contradiz o que estou lhe dizendo, mas um exemplo de como se está construindo a hegemonia.
– Você realmente considera que seja possível construir a igualdade sem afetar a liberdade individual? Como crê que vocês podem ter sucesso onde todos fracassaram?
– É difícil. Mas a forte base comunitária camponesa desse processo ajuda, funciona como autorregulação interna. Nós aprendemos a arte de tecer da cultura indígena. A hegemonia não é uma garantia, mas um elemento importante para limitar tentações e riscos. Até agora fizemos sem impor expropriações, absorvendo tudo pelo caminho. É um império em decadência que tem problemas gravíssimos em outros lugares e um ambiente continental em transição, com políticas de superação do modelo neoliberal.
– Você vê concretamente políticas pós-neoliberais na América Latina?
– Sim.
– Onde? Quais?
– Não há um único modelo pós-neoliberal. Mas há um processo de desmantelamento do neoliberalismo em desenvolvimento, de modo disperso, com modalidades diversas no continente. Este modelo econômico se impôs na América Latina com três modalidades: conversão dos bens público em bens privados, anulação dos direitos sociais e conversão do aparato produtivo baseado nas exigências do mercado externo.
– E não continua da mesma maneira?
– Em parte sim e em parte não. Quando no Brasil, na Venezuela, no Equador se realiza um incremento das políticas sociais com recursos públicos, não se liquida o neoliberalismo, mas se desfere um golpe na sua característica principal que é a redução ao mínimo da proteção do bem-estar coletivo. Antes a regra era a anulação dos direitos dos trabalhadores e dos benefícios coletivos da cidadania, se deixava apenas algumas proteções na educação e alguma coisa na previdência dos setores privilegiados das indústrias mais importantes. Agora não se predica mais esse modelo.
– Tomemos a Venezuela. Lá está em desenvolvimento um processo de redistribuição da riqueza. Alguns se preocupam em produzir mais riqueza e depois distribuí-la melhor? As classes populares, na sua opinião, são de fato titules de um novo poder? Tem um presidente que se dirige a eles, quando fala, mas se vê uma verdadeira distribuição do poder? Há uma distribuição da riqueza, mas isto também a direita saber fazer, não?
– A minha resposta será necessariamente geral. Há processos mais e menos avançados. A Bolívia me parece uma vanguarda, mas é um fato importante que em nenhuma parte do continente, salvo em alguns universidades ligadas a grandes empresas, ninguém reivindica mais o modelo neoliberal como horizonte. Claro que esse modelo continuará a existir por muito tempo, mas o apetite social de gera outro é evidente. Serão necessárias décadas. Este modelo começou nos anos 70 com Pinochet e triunfou nos anos 90. É preciso dar tempo aos processos históricos. É preciso ser generoso com a história.
– Você não tem medo dos efeitos sobre a Bolívia, de um eventual retorno de governos de direita nos países vizinhos?
– Marx falava de ondas revolucionárias. E tinha razão. Os processos profundos, não apenas os políticos, mesmos os privados, não são nunca ascendentes. Avançam por ondas. Não vejo com dramaticidade a possibilidade que em dois ou três países se dê um passo atrás. A história se move em ciclos longos, não curtos. É preciso não ter uma visão contemplativa em relação aos processos históricos. Buscaremos um tipo de convivência fraternal entre Estados. Acho que no Chile a vitória da direita era previsível, mas eu sou muito otimista sobre a continuação do Partido dos Trabalhadores no governo do Brasil, na Argentina é muito mais complicado, no Peru no entanto é possível um avanço dos setores progressistas. O problema é na Argentina, ali o futuro é imprevisível.
– Mudaram as relações entre os EUA e a Bolívia com o governo Obama?
– Na atitude e na linguagem, são melhores. Nos fatos concretos, não. Eles continuam a pensar que os valores deles são os únicos e são universais.
– Você acha realmente que a direita do Oriente se deixará absorver? Não tem medo de um atentado?
– É um risco grande. Não têm mais a força política para tentar uma secessão. O magnicidio é considerado por alguns setores como a única solução.
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