RESENHA – CRÔNICAS DA MOOCA
Mooca genovesa
Em crônica repleta de cheiros, cores e lembranças, Mino Carta esquadrinha o mais paulistano dos bairros em livro para ser devorado com um cálice de um tinto encorpado
Por Gilberto Maringoni[1]
Mino Carta não é da Mooca. É de Gênova, outro bairro paulistano, um pouco mais distante do centro e de costumes e hábitos mais comedidos. No entanto, Mino escreve como se puxasse uma cadeira de palhinha na calçada da Barão de Jaguara ou da Oratório, nos colocasse em roda e passasse a desfiar suas andanças pelos cheiros, cores e histórias do lugar.
Na língua dos originais a região significa fazer casa (moo + ca). Quem diria, o duplo ‘o’, um fechado e outro aberto, nada tem a ver com os carcamanos do sul da Itália, mas com os índios que habitavam o lugar, muito antes da festa de San Gennaro se tornar popular, com suas tarantelas, molhos e sotaques de consoantes marcadas e ritmo flauteado.
As histórias de Mino estão em Crônicas da Mooca, um livrinho charmoso da coleção Paulicéia que a Boitempo Editorial acaba de relançar, ilustrado por dezenas de imagens de Helio Campos de Mello. A edição original é de 1983. Para a nova, o autor escreveu dois adendos – prefácio e pósfácio – carregados de melancolia diante da fúria imobiliária que transforma vilas e casarões em sequências de torres de gosto e estilos indefinidos.
Possivelmente a Mooca do início dos anos 1980 ainda guardasse muito da marca das fábricas e costumes operários que hoje praticamente desapareceram.
O livro é uma sinuosa crônica, de texto cuidadosamente esculpido em estilo estica e puxa, na qual o editor de CartaCapital engata um assunto em outro, montando um caleidoscópio de histórias que percorrem quase um século do mais paulistano dos bairros. Bom seria lê-lo junto com outra obra-prima da coleção, Brás, sotaques e desmemorias, de Lourenço Diaféria (1933-2007).
Separados hoje pela Radial Leste, os dois volumes esquadrinham o mesmo espaço geográfico e afetivo, com visões um tanto distintas. Enquanto Diaféria declara ter sentido a vida sempre dura naquelas redondezas, Mino busca um tempo passado que imagina melhor.
Ele não é do lugar, mas aparenta querer ter sido. Conta da égua Faísca, usada para a entrega de pães pelas ruas de paralelepípedo, detém-se em histórias miúdas de gente que sonhava com o outro lado do mar, em sagas perdidas, fala de amores feitos e desfeitos, de fuzarcas de garotos, de Angelos, Taninos, Fortunatas, Alfonsos e seu filhos, netos e chegados. Tudo é contado com o prazer de quem degusta pães e brioches da Di Cunto, a mais tradicional confeitaria da zona leste paulistana, quiçá da própria metrópole.
Politicamente, a região já conheceu de quase tudo. Antiga periferia da capital, para lá se dirigiram imigrantes italianos e espanhóis pobres dos fins do dezenove, atraídos pelo primeiro surto de industrialização, sem saber ao certo que viriam substituir os braços negros na lida pesada. Jornadas infindáveis, trabalho infantil, salários mirrados e moradias precárias funcionaram como pavio de uma dinamite social que explodiria na formidável greve de 1917. A cidade parou por quase duas semanas, a partir de um protesto as operárias do cotonifício Crespi, de propriedade de Rodolfo Crespi, um dos poucos oriundi a se dar bem nas terras do outro lado da várzea do Tamanduateí e ter vida de nababo.
A turma do lugar era mesmo da pá virada, conta Mino. Enfrentou bombardeios de aviação na Revolução de 1924 e acabou batizando o largo na confluência da avenida Paes de Barros com as ruas da Mooca e Oratório, uma espécie de marco zero do lugar, de praça vermelha, tal a quantidade de comícios e manifestações que marcaram aquelas quadras.
Ao mesmo tempo, parte da italianada ali estabelecida se admirava com os feitos do condottiere que fazia e acontecia em sua terra natal. Il Duce, contavam alguns, restaurou monumentos e fez os trens italianos chegarem e partirem com precisão britânica. Talvez venha dessa mistura a influência que fenômenos eleitorais, como o adhemarismo, o janismo e o malufismo tiveram da Taquari até para lá do Juventos, o ex-clube operário, por décadas a fio.
Mino não faz sociologia. Busca melancolicamente lembranças de um bairro que não existe mais. Muita coisa mudou. O sotaque cantado e a fala exagerada se mantém, a melhor casa de massas é dirigida por irmãos paraibanos, o Toninho do churro, depois de meio século de atividades, fechou as portas sem revelar sua receita a ninguém e a festa de San Gennaro segue em frente. Mas a ocupação do espaço, na palavra dos arquitetos, mudou. O Crespi, que poderia ser uma espécie de museu do trabalho, foi selvagemente modificado para abrigar um hipermercado.
Mas há uma informalidade meio brusca e meio carinhosa que subsiste nas gentes, um tom direto nas falas e gestos que faz da Mooca algo tão indefinível quanto o esquisito encontro vocálico de seu nome. Isso sobrevive a qualquer fúria pretensamente modernizante.
[1] Morador do Belenzinho
* Resenha publicada também na Agência Carta Maior
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