ARTIGO – O CABO ANSELMO NA BAND, POR URARIANO MOTA

Aos reclamos e avisos dos amigos, “não esqueça o Cabo Anselmo hoje na televisão… Não deixe de ver”, ou até mesmo aos comentários posteriores ao programa onde Anselmo apareceu: 

“…estou indignada como uma rede como esta dá espaço a um celerado desses… olha, foi um horror!… não podemos alhear-nos de assuntos que são nossos, porque são valores fundamentais a liberdade, a dignidade da pessoa humana e o restabelecimento da verdade. Por mais que o nosso povo mergulhe num mar de esquecimentos, escritores como você devem gritar que estes valores existem e merecem ser afirmados e proclamados”

A tais avisos, reclamos e estímulos, de sã consciência não se pode faltar.  E não só em razão de um ponto de vista técnico, de pura técnica da entrevista, do jornalismo que sumiu do Canal Livre em 30 de agosto. Há coisas anteriores, posteriores e eternas, acima e lá no alto, longe de qualquer jornalismo ou técnica. Refiro-me à elipse e à curva de fuga de Soledad Barrett Viedma na entrevista com o Cabo Anselmo. Pois ela é a pessoa onipresente às aparições verbosas de José Anselmo dos Santos. Ainda que ele faça de contas que não a veja. Ainda que jornalistas façam de contas que ela é só um item, quem sabe menor, da pauta,

 

Soledad em Montevidéu, antes de embarcar ao Brasil, início dos anos 1970

Soledad em Montevidéu, antes de embarcar ao Brasil, início dos anos 1970

Soledad Barrett é o centro, a pessoa que grita, o ponto de apoio de Arquimedes para os crimes do Cabo Anselmo. Ainda que ela não fosse bela, de uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti;  ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu, por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim, se fosse possível excluir toda a sua vida de antes, Soledad é a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe sentencia, aonde ele for: “Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha”.

Mas se retiramos essas questões mais essenciais, como a natureza de Soledad ou como a natureza dos crimes desse espião,  como se inúteis fossem, ainda assim o programa pecou no jornalismo, na falta de. De modo sintético, aqui vão algumas características da entrevista. Ou do monólogo do “entrevistado”. 

O Cabo Anselmo pautou a entrevista. Falou o que quis, como quis, quando quis,  enganou e conduziu o espetáculo. Ele não foi o entrevistado. Salvo engano, ocorreram dois impedimentos básicos, que desceram o nível informativo a um ponto muito baixo:

1. A produção do programa deve ter feito um acordo prévio com o advogado de Anselmo, com o próprio e companhias da velha ditadura. Em troca da exclusividade da entrevista, que talvez tenha dado o maior ibope do programa até hoje, Soledad pode ter sido a moeda. Mas o  acordo nos bastidores aparece, assim como um ladrão flagrado no furto. Anotei que Fernando Mitre, ao mencionar Soledad, o Cabo Anselmo responde, com as duas mãos levantadas, como quem se defende, como quem faz lembrar um trato, que ameaça ser rompido: “Opa!”. E Mitre, de volta: “Depois o senhor fala sobre ela”. E ele, “ah, claro”. E o que se viu depois foi  nada, ou quase nada.

2. No programa da Band, mas não só ali, na verdade com todos os jornalistas que têm entrevistado o Cabo Anselmo, do repórter Octávio Ribeiro, o Pena Branca, até Percival de Souza, todos têm um baixíssimo nível de compreensão da luta clandestina, do movimento socialista e do tipo de agente que é Anselmo. No Canal Livre, ele falou em OLAS e passou batido. Referiu-se ao cofre de Adhemar, e nem se deram conta do que isso significava. Acusou covarde e impune um político morto, Miguel Arraes, que teria ficado com o dinheiro tomado desse cofre, e no estúdio só se ouviu a respiração ofegante dele, Anselmo, a estrela cansada com o seu figurino de 1970. Mais uma vez ele foi entrevistado por jornalistas que se submetem às condições que o “cabo” e companhia impõem e determinam. É claro que não me refiro às condições da mais absoluta segurança que Anselmo define, sempre cercado por seguranças, policiais, por servidores do velho regime, que está vivo e impune. Coisa natural para um personagem responsável por assassinatos de muitos militantes socialistas, e que por isso teme uma vingança, um justiçamento, como se estivéssemos ainda em 1973. Refiro-me aos acordos, limites das perguntas e abordagens que ele Anselmo define.

Nesse Canal Livre,  o que poderia ser o grande momento do programa, que desmontaria mais uma farsa do criminoso, apenas foi insinuado, como uma falha do script. Sabe-se, e de experiência eu digo, que ninguém pode ficar muito natural no ar sem que um imprevisto aconteça. Isto se deu quando um dos entrevistadores perguntou ao Cabo Anselmo pelas torturas que sofrera – o que, afinal, justificaria a sua “passagem para o outro lado”. Anselmo falou então que foi atirado em uma cela “infecta!!!!”, infecta, como primeira tortura… Um lance terrível do canastrão. Depois, falou em generalidades sobre o instrumento da tortura, e quando tentou descrever o que sofrera, a sua descrição foi exterior, de quem observou torturados. A dor e o inferno não são dele.

A isso observou um jovem muito inteligente, preciso e certeiro:

 “Prestei bem atenção quando perguntaram se ele havia sido torturado. Ele respondeu  como havia ficado na hora da tortura, contou como levou choque elétrico, e que se encontrava no momento numa sala semi-escura. Contou. Mas eu não vi, não senti nele a voz de uma pessoa que sofreu tamanho sofrimento. Não presenciei na sua voz um sentimento de revolta, um só embargo na voz dele não existiu!!! Comparo com amigos, quando lembram de brigas no colégio em que sofreram covardia e humilhação, e todas vezes em que contam ficam irados pelo que sofreram. Para uma pessoa que ficou nua, em situação de vexame, que sofreu tamanha humilhação, ele falou com muita naturalidade sobre o assunto!!!”

 Ao que completou o escritor e jornalista Alípio Freire, em aguda percepção, com a autoridade de quem sofreu a tortura:

 “O senhor Anselmo cometeu uma gafe homérica ao descrever a tortura no pau-de-arara, quando disse que amarravam uma corda nos tornozelos e outra corda nos pulsos. De minha parte devo dizer que até hoje não soube de nenhum caso em que os tornozelos fossem amarrados. Eles ficavam presos entre os pulsos – estes, sim, amarrados”

 Então caiu mais uma pedra do dominó, à revelia do script: o Cabo Anselmo jamais foi torturado. E por isso e por causa, ele não passou para o outro lado, para sobreviver, como uma solução ao desafio proposto por Fleury: “ou colabora ou morre”, como tantas vezes tem repetido. Se bem lembramos, essa versão da passagem se montou quando o dirigente comunista Diógenes de Arruda Câmara o viu a passear no Dops paulista. E fez chegar essa descoberta aos exilados no Chile. Por isso, por falta de pesquisa,  interesse ou ignorância, mais de um repórter tem creditado e acreditado que ele passou para o outro lado a partir da sua prisão. Nisso acreditam, sem a percepção aguda de jovens inteligente ou de poetas ex-presos políticos. 

 Assim, sem mais exame, sem mais pesquisa, os jornalistas deixaram-no construir uma boa história sobre um homem que, depois da prisão, foi obrigado a sobreviver e por isso cometeu as maiores torpezas. Então os jornalistas esquecem e desconhecem que indivíduos, por certo, ao longo da vida, mudam de convicção. Indivíduos, é claro, sob extremo sofrimento, entregam e delatam e levam outros à morte. Isso é mais comum do que se imagina. Mas indivíduos não passam com tamanha alegria, satisfação e competência para um papel exemplar de infiltração em menos de uma semana. Os atores, sabemos da experiência dos artistas do teatro, têm um processo de ensaio e preparação que demanda mais tempo que uma semana. Mas em Anselmo há qualquer coisa na sua transformação que nem Graham Greene e John Le Carré seriam capazes de escrever. Porque a sua conversão é uma mentira, produzida com o mesmo talento das historinhas de resistência à prisão que a censurada imprensa publicava, sempre que “terroristas” eram mortos.

 O sistema em que vive o Cabo Anselmo bem expressou John Le Carré, em “O espião que saiu do frio”:

 “A mentira não é particularmente difícil; trata-se de uma questão de prática, de perícia profissional, de uma habilidade, em suma, que muitos de nós podemos adquirir. Mas enquanto um vigarista, um ator ou um jogador profissional pode voltar da ribalta às fileiras dos seus admiradores, o agente secreto não goza dessa possibilidade. Para ele, o embuste é, antes de tudo, uma estratégia de autodefesa”.

Urariano Mota no lançamento de Soledad no Recife, em São Paulo

Urariano Mota no lançamento de Soledad no Recife, em São Paulo

Desde quando comecei a escrever “Soledad no Recife”, publicado este ano pela Boitempo, que o acompanho em livros, em vídeos, e toda a imprensa. E cada vez mais percebo que o embuste Cabo Anselmo não se adaptou aos novos tempos. Por isso a sua retórica, em sucessivas entrevistas e no Canal Livre neste 2009, perdeu o vínculo com o real. A sua mentira perdeu a verossimilhança, o que é muito grave para um agente. Enquanto ele fala, não importa o que fale, o que diga, sentimos crescer em nós os crimes que cometeu, como um discurso pronunciado ao contrário. Quando ele fala, quem o escuta ouve Soledad Barrett. Ainda que não queira, o Cabo Anselmo está condenado a rever, a recordar, a tornar a ver seus crimes, sempre. Ele não tem outro nome nem outra face. Com barba, ou com peruca, como no último Canal Livre, pouco importa. Ele será sempre, para onde for, até o túmulo, Cabo Anselmo, aquele que gerou a morte da sua companheira, que trazia um filho no ventre.

Não há solução jurídica, perdão ou anistia que o alcance.   

 

* Urariano Mota é escritor e jornalista, autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009)

2 comentários em ARTIGO – O CABO ANSELMO NA BAND, POR URARIANO MOTA

  1. Cecília Luedemann // 04/09/2009 às 10:42 am // Responder

    Caro Urariano,que o seu livro contribua para o esclarecimento sobre os crimes contra mulheres e homens que lutaram pela democracia e por um Brasil mais justo.
    Agradeço por trazer Soledad à luz e devolver, neste artigo, Cabo Anselmo à escuridão dos porões da repressão. Cada história recontada fará a justiça à memória de nossos grandes heróis e restabelecerá um juízo crítico sobre as mentiras disseminadas pelos defensores da ditadura.
    Que esse juízo crítico nos leve pelos caminhos dos juízes chilenos contra os criminosos da ditadura.
    E mais uma vez, parabéns pela Boitempo.
    Um abraço fraterno
    Cecília Luedemann

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  2. Lúcio Laboissiere // 12/09/2009 às 12:03 am // Responder

    Senhor Urariano.
    Nasci em 1972, portanto era uma criancinha no tempo da ditadura. Sou um cara que se preocupa com as coisas da vida e, através da Internet – santa Internet!,pude assistir à entrevista do Cabo Anselmo e, com toda a minha ignorância, achei interessante essa versão daquele que viveu o outro lado. Até então, somente conhecia a versão na qual os militares são pintados como o diabo, já que não deixaram que o paraíso terrestre, na versão do comunismo, se realizasse nestas terras; pelo menos naquela época.
    Como você, interesso-me pela verdade, por isso gostaria de contribuir chamando a atenção para dois pontos do seu artigo.
    O primeiro: utilizar como base o depoimento de pessoas que “conheceram”, num relance, toda a verdade e realidade através da fisionomia de alguém ou por meio do timbre de voz é algo muito temerário. Será que devemos esperar que todas as pessoas reajam da mesma forma em situações mesmo semelhantes?! Isso seria um absurdo! Nem todas as pessoas vão ficar loucas de ódio, ou de ressentimento, por causa de um drama, por mais triste que possa parecer.
    O segundo: “não soube de nenhum caso em que os tornozelos fossem amarrados”. Fiz agora, uma pesquisa de imagens no Google sobre o tema “tortura – pau de arara” e vi muitas figuras nas quais o torturado não têm os tornozelos amarrados; no entanto vi muitas que mostram o tornozelo amarrado. Acho que o assunto está tratado de forma muito simplificada.
    Acho que tem mais sinceridade do Cabo Anselmo do que em vocês, que simplificam muito as coisas para poder passar a imagem que defendem.

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