Entrevista com Maria Orlanda Pinassi

maria orlanda 2Maria Orlanda Pinassi é professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (campus de Araraquara, São Paulo) e é autora de Três devotos, uma fé, nenhum milagre (Editora Unesp, 1998) e do recém lançado Da miséria ideológica à crise do capital: uma reconciliação histórica (Boitempo).

A autora participou no último dia 19 da mesa “Marx, Lukács e os intelectuais revolucionários”, durante o III Seminário Margem Esquerda, cujo tema, este ano, foi uma homenagem ao legado do filósofo húngaro István Mészáros. Abordando vários assuntos que se colocam no horizonte da civilização ante a crise estrutural do capital, Maria Orlanda comentou temas como a importância dos movimentos sociais, a obra de Mészáros, a questão agrária no Brasil e o feminismo. Confira a entrevista:

Durante o debate, você disse que após ler a obra de Mészáros, sentiu falta de um ‘o que fazer’,  de quais seriam os próximos passos após a crítica apurada que ele faz do sistema do capital. Se não há uma receita, quais seriam as ‘pistas’, as trilhas abertas por sua crítica que podemos seguir para desenvolvermos uma teoria e prática de transição, de superação do sistema?

De fato, eu disse que quando estava terminando de fazer a revisão da tradução do livro Para além do capital, pensei que, após ter atravessado aquela que me pareceu a mais arguta e radical crítica do sistema sócio-metabólico desde Marx, incluindo aí desde as experiências concretas da relação capital-trabalho, e todas as principais formulações teóricas, fossem elas apologéticas ou anticapitalistas, encontraria um capítulo conclusivo no qual pudéssemos trilhar os caminhos das pedras. No fundo, acho que todos nós buscamos modelos através dos quais possamos pegar atalhos. Não os encontrei ali, e só o amadurecimento da minha relação com as suas teses mais fundamentais é que me levaram a compreender que a realidade histórica é um processo ativado por causalidades impossíveis de serem controladas pela vontade revolucionária. Essa postura de Mészáros desmistifica, tanto quanto Marx fez no século XIX, a crença de que a consciência determina a história. O que Mészáros nos oferecia com aquele magistral estudo de mais de 25 anos eram as ferramentas para não só interpretarmos criticamente a nossa história passada e presente, mas, e acima de tudo, um chamado urgente da responsabilidade ontológica e da perspectiva radicalmente revolucionária na realidade potencialmente destrutiva e irreformável do capital.

Embora estejamos em uma democracia, os movimentos sociais e a pobreza seguem sendo criminalizados. Este é o preço a ser pago por quem se confronta com o capital? O movimento social é a base da transformação?

Durante muito tempo, as esquerdas acreditaram que o progresso do capitalismo corresponderia ao desenvolvimento da consciência da classe operária. Ou seja, que o momento mais desenvolvido do capital equivaleria, conseqüentemente, à construção plena das instituições democráticas e ao momento mais propício à ruptura revolucionária pela classe operária organizada e consciente de seu papel histórico. O que vivenciamos atualmente representa exatamente o contrário disso. Quanto mais o capital progride, mais recua a perspectiva revolucionária dos trabalhadores. O desemprego estrutural e a perda progressiva das conquistas trabalhistas são os principais motivos do refluxo da luta que cada vez mais assume contornos defensivos. Por outro lado, trabalhadores desempregados procuram, na mesma proporção, novas formas de representação político-organizativa, novas formas de aflorar a luta de classes, através de movimentos sociais de massas, cujas estratégias são baseadas, sobretudo, em ocupações de terra e de prédios públicos. Fora do controle imediato do Estado, essas estratégias põem à prova a verdadeira dimensão da democracia burguesa que vem se assumindo com muita desenvoltura os papéis que tradicionalmente foram desempenhados por regimes autoritários, fascistas. Neste caso, portanto, a criminalização dos movimentos e a repressão vêm para o primeiro plano na relação que o capital estabelece com o trabalho.

Qual o espaço de transformação pela via institucional? Após o fracasso das experiências sociais democratas na Europa, acredita que ela está esgotada?

Essa questão remete ao mesmo problema observado acima. Para István Mészáros, nesta fase de crise estrutural, o capital é irreformável, portanto, as velhas fórmulas de contenção das crises cíclicas articuladas pela social democracia, que no passado não muito longínquo, alcançaram tanto êxito, hoje não têm a menor chance de obter algum resultado realmente positivo. De alguma forma, podemos dizer o mesmo em relação a qualquer perspectiva de transformação pela via institucional que, na atualidade, vem se adaptando, através de múltiplas contra-reformas, às necessidades cada vez mais destrutivas, anti-civilizatórias e desumanizadoras do avanço do capital. Obviamente que, pela via institucional, ainda há necessariamente espaço efetivo para a luta defensiva seja pelos direitos humanos, seja nos planos sindical e político-parlamentar. No entanto, não se pode mais ter ilusões quanto à auto-suficiência e autonomia dessa luta historicamente controlada pela capital. Trata-se, hoje, de empreender formas de luta que só podem ser verdadeiramente ofensivas se constituírem uma importante unidade entre sindicatos, organizações político-partidárias e movimentos sociais de massas.

O Brasil tem reafirmado sua vocação agrícola no desenvolvimento desigual e combinado global? O que isto pode representar (os ônus) para o País em médio e longo prazo?

Eu costumo dizer que os países da América Latina, Brasil inclusive, apesar de seu novo papel “sub-imperialista” no continente, estão experimentando uma nova relação de colonialidade com os países do centro irradiador das determinações capitalistas. Essa condição se estabelece através da instalação extremamente agressiva, violenta e prepotente dos interesses das transnacionais do agronegócios por aqui que, estrategicamente, vêm obtendo todo tipo de incentivo do Estado, nos mais diversos níveis (federal, estadual, municipal), e se utilizam das elites internas para solapar o avanço dos movimentos sociais de massas, como o MST, no Brasil, e demais movimentos que compõem a Via Campesina. Caso clássico disso que estou dizendo é o que temos observado no Rio Grande do Sul, cujo governo é desavergonhadamente “parceiro” das transnacionais e tanto quanto os proprietários de terra (vide o terrível exemplo de São Gabriel) vêm comprometendo, mediante ameaças e severos atos de repressão, a permanência do MST no Estado. A intenção é também a de inviabilizar a atuação do Incra no sentido de desapropriar terras para fins de reforma agrária e destiná-las para plantio de soja, eucalipto, cana e demais monocultura. Tal cenário nos remete ao recrudescimento do insolvente desenvolvimento desigual e combinado que, para o bem e para o bem, impõe a absoluta desmistificação de que o progresso possa ainda ser civilizatório, sobretudo, neste canto do planeta. A curto prazo, portanto, – porque a intervenção é urgente – a desilusão com o sistema e a ausência de expectativas em relação às suas “positividades” deve necessariamente remeter a luta de classes para novas e muito mais desafiadoras formas de enfrentamento contra o capital.

Quando pensamos em autores do pensamento crítico radical, citamos poucas mulheres. Como o capital reforça a opressão de gênero? A sua superação garantirá a superação do machismo? Se não, qual a tarefa para os socialistas nesse sentido?

Para responder a essa questão, gostaria de me reportar a uma situação particularmente importante para mim. Venho acompanhando a organização interna das mulheres que compõem a Via Campesina, com destaque para as ações que, desde 2006, efetuam em oito de março, dia internacional das mulheres. Em todos esses momentos, uma questão que me parece particularmente problemática é a de que, muito embora a supressão da opressão das mulheres seja vital à construção de uma alternativa societária, essa afirmação está muito aquém de constituir unanimidade no interior dos movimentos sociais.

Ao que tudo indica, a atuação mais efetiva dos homens está voltada à realização objetiva das questões econômicas, tendendo a arrefecer com as conquistas mais imediatas da sua luta. A processualidade das lutas e a positividade das conquistas para o movimento como um todo é obviamente incontestável, mas pode também se converter numa regressividade – tendo em vista a retomada das relações hierarquicamente estruturadas – sobretudo para as mulheres que experimentam neste processo o retorno à antiga condição de seres submetidos à dominação patriarcal. É neste momento que as mulheres, ou pelo menos parte substantiva delas, tomam a decisão de não aceitar esse retrocesso e passam a lutar no interior do movimento pelo reconhecimento de seu papel fundamental em todos os momentos de afirmação da luta. Ou seja, são as mulheres que vêm impondo uma necessária autocrítica permanente ao movimento como um todo. [1]

Sua luta, portanto, não parece ser contra os homens, mas contra as deformações patriarcais que todos (inclusive mulheres) carreiam e reproduzem no movimento. Sua praxis ganha ainda mais radicalidade no confronto direto contra as transnacionais que reproduzem de forma explosiva a prática da monocultura e da destruição ambiental.

O quadro, enfim, descreve uma situação particularmente rica para tentarmos compreender e enfrentar os rumos atuais da organização da classe trabalhadora, tendo em vista as características que hoje se demandam do sujeito da transformação social. E, nesta medida, reúne alguns dos elementos que, a princípio, nos parecem essenciais: o protagonismo radical de mulheres trabalhadoras que, do interior de um movimento social de massas dos mais significativos da América Latina, enfrenta alguns dos epítetos mais consagrados do sistema sócio-metabólico do capital na atualidade, desafiando a própria capacidade deste movimento de constituir uma sociabilidade substantivamente igualitária.


[1] “Fundar y construir uma nueva civilización humana – desafio presente de la humanidad em busca de supervivencia – significa fundar y construir um nuevo modo de vida. Esto significa incorporar la noción y visión de gênero como elemento constitutivo del pensamiento y las prácticas questionadoras de las sociedades actuales, y de los procesos de construcción de las nuevas. Ello posibilitará hacer visibles y modificar las relaciones sociales asimétricas establecidas entre hombres y mujeres, base para la producción y reproducción de otras tantas asimetrias y discriminaciones: de color de piel, discapacidad física, etnia, cultura, belleza, identidad sexual, etc.” Isabel Rauber. ”Gênero y alternativas populares en Latinoamérica y el Caribe”. Texto baseado no artigo “Movimientos sociales, género y alternativas populares em Latinoamérica y el Caribe”, publicado em Itinéraires IUED, Genebra, n. 77, 2005.

4 comentários em Entrevista com Maria Orlanda Pinassi

  1. Lindalva Maia // 02/09/2009 às 12:40 pm // Responder

    Interessante

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  2. Rafaela Rabesco // 02/09/2009 às 10:45 pm // Responder

    Irretocável essa entrevista!
    Maria Orlanda sempre mantém seu tom excepcional quando se trata de responder a questionamentos tão pertinentes. De maneira profunda e certeira ela recoloca a teoria no patamar primordial da reflexão, levando em conta as potencialidades da ação e seus embroglios.
    É perspicaz nas palavras e ácida nas críticas.
    Ser humano de rara beleza e poesia.
    Parabéns pela entrevista e obrigada pela sua contribuição sempre!

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  3. É sempre bom ter contato com avaliações tão ricas sobre nosso momento histórico. Esta entrevista da professora Maria Orlanda serve a este propósito e, justamente, nisso reside sua importância.

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  4. Agradeço a Boitempo pela oportunidade desta entrevista e a querida professora Maria Orlanda.
    Contribuição que permeia a construção permanente do nosso devir.

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