2. Trabalho na República Velha: a resistência da classe dominante
OS 50 (E TANTOS) ANOS DO(S) GOLPE(S) CONTRA A CLASSE TRABALHADORA
POR JORGE LUIZ SOUTO MAIOR
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Especial de Jorge Luiz Souto Maior, para o Blog da Boitempo.
Confira o sumário completo aqui.
Esses sentimentos repercutem na formação da República, que vislumbra a teoria liberal apenas no limite da preservação dos interesses da classe política e econômica dominante, formada, sobretudo, por ex-senhores de escravos. De 1989 a 1919, imperam as concepções de um liberalismo-conservador-escravista, que conduzem os trabalhadores à sua própria sorte.
A assinatura, pelo Brasil, do Tratado de Versalhes, em 1919, impõe que se ponha em discussão a conveniência da adoção de uma legislação trabalhista no Brasil, sendo que o período é coincidente com o aumento da consciência dos trabalhadores em torno de sua organização política.
A década de 20 será marcada pela resistência explicita ao advento de uma legislação trabalhista no Brasil, assim como à atuação dos sindicatos, o que já era bastante intenso, e do Partido Comunista.
Nesse período, o argumento utilizado é o de que as classes sociais estão em harmonia, não havendo necessidade da criação de direitos aos trabalhadores, afina, não há sequer insatisfação da parte dos trabalhadores. Além disso, corre-se o risco de torná-los indolentes e insubordinados.
Em 1925, o governo republicano publicou o Decreto n. 4.982, de 24 de dezembro, que instituiu o direito de férias aos empregados e operários. Esta iniciativa foi, concretamente, um marco da mudança da postura do Estado frente a questão trabalhista, que teria ocorrido, portanto, antes do governo Vargas.
A então denominada “lei de férias” estabelecia, no artigo 2º., que competiria ao Poder Executivo, editar uma regulamentação para que o direito fosse exigível. Alguns autores consideram que tal regulamentação não foi feita e que, em virtude disso, a lei em questão não foi aplicada, sobretudo “na indústria, por pressão dos industriais.”1 Não foi bem assim. De fato, a “lei” foi regulamentada em outubro de 1926 e a sua não aplicação, em concreto, que é uma verdade, deveu-se a uma resistência expressamente assumida pelos industriais.
Essa “lei”, como adverte João Tristão Vargas, inaugurou nos empresários um temor de que direitos trabalhistas pudessem ser efetivamente aplicados em âmbito nacional, constituindo mesmo um indicativo de que uma mudança na postura do Estado, ainda liberal, frente à questão do trabalho, estava se anunciando, ainda mais quando se fixou o permissivo da participação de representantes dos trabalhadores2, ao lado de representantes dos empregadores, nas reuniões que se realizaram no Conselho Nacional do Trabalho, órgão responsável pela elaboração da regulamentação da lei.
Percebendo os indicativos dessa mudança, passava a ser relevante, aos olhos dos industriais, apresentar firme resistência à lei de férias. Os empregadores, assim, se organizaram e se prepararam para as reuniões no Conselho Nacional do Trabalho.
Chegando a uma dessas reuniões, “Street apresentou um protesto, em nome das associações patronais ali representadas. Neste dizia-se que a presença patronal ali não significava a ‘aceitação mansa e pacífica’ da lei: ‘(….) Somos pelo contrário obrigados a protestar contra ela e a declarar francamente que, homens da ordem como somos, procuraremos dentro das possibilidades legais obter a revogação ou a justa interpretação da lei a que nos estamos referindo (….)’.” 3
Várias foram, aliás, as formas utilizadas para atacar a “lei de férias”, expressas em manifestações individuais e mesmo em documentos elaborados pelas associações de empregadores.
Em um desses documentos, segundo relata Luiz Werneck Vianna4, foram apresentados argumentos que se iniciavam com uma epígrafe citando manifestação de Henry Ford, no sentido de que “não podereis fazer maior mal a um homem do que permitir que folgue nas horas de trabalho”.
Na visão dos empresários a lei era “perigosa” não apenas pelos aspectos comuns da argumentação econômica de que geraria custos adicionais para produção, impondo uma interferência indevida no mercado produtivo, mas porque “abriria para o trabalhador a perspectiva de reivindicações sociais crescentes” 5, entendidas estas não as de natureza econômica, mas de natureza revolucionária. Como esclarecido em passagem do documento em questão:
Esta classe (operária) jamais se congregou em torno de ideais avançados e nunca teve veleidades de esposar a grande cópia (sic) de reivindicações que por vezes chegam a inquietar a sociedade dos velhos países industriais do estrangeiro. A única finalidade do proletariado é o trabalho bem remunerado e sua alma simples ainda não foi perturbada por doutrinas dissolventes que correm mundo e que, sem cessar, vêm provocando dissídios irremediáveis entre duas forças que, bem orientadas, não se repelem, antes de completam em íntima entrosagem: o capital e o trabalho.
Assim, “a lei de férias seria imprópria e desnecessária”. Conforme expresso no documento, segundo narração de Werneck, “em oposição ao desgaste intelectual, o trabalho manual solicita apenas ‘atos habituais e puramente animais da vida vegetativa’. Dentro de certos limites, não exigiria tempo livre para recuperação. Citando-se Ford, para dizer que ‘quem pensa com acerto sabe que o trabalho vale pela salvação da raça – moral, física e socialmente’. A recorrência a Ford não se limita a um argumento de autoridade. Está, ao contrário, incorporada consistentemente à concepção do mundo dos dirigentes classistas da burguesia industrial de São Paulo.” 6
Resta clara em tal documento a argumentação de que:
Os lazeres, os ócios, representam um perigo iminente para o homem habituado ao trabalho, e nos lazeres ele encontra seduções extremamente perigosas, se não tiver suficiente elevação moral para dominar os instintos subalternos que dormem em todo ser humano.
E acrescenta:
Que fará um trabalhador braçal durante quinze dias de ócio? Ele não tem o culto do lar, como ocorre nos países de climas inóspitos e padrão de vida elevado. Para o nosso proletário, para o geral do nosso povo, o lar é um acampamento – sem conforto e sem doçura. O lar não pode prendê-lo e ele procurará matar as suas longas horas de inação nas ruas. A rua provoca com frequência o desabrochar de vícios latentes e não vamos insistir nos perigos que ela representa para o trabalhador inactivo, inculto, presa fácil dos instinctos subalternos que sempre dormem na alma humana, mas que o trabalho jamais desperta. Não nos alongaremos sobre a influência da rua na alma das crenças que mourejam nas indústrias e nos cifraremos a dizer que as férias operárias virão quebrar o equilíbrio de toda uma classe social da nação, mercê de uma floração de vícios, e talvez, de crimes que esta mesma classe não conhece no presente.7
Por ocasião da regulamentação do trabalho do “menor”, que tem início com a edição do Decreto n. 5.083, de 1º. de dezembro de 1926, que proibia o emprego de menores de 14 anos, limitava em 6 horas a jornada para os menores de 18 anos, com a concessão de uma hora de intervalo e vedava o trabalho destes no horário noturno, novamente os industriais apresentaram forte oposição.
Conforme relata Werneck Vianna, para os representantes de associações patronais de São Paulo, segundo expresso em um documento que enviaram ao presidente da Câmara dos Deputados, “A implementação da lei seria inviável por questões de ritmo e da ordenação do trabalho industrial”8. Sustentavam, em tal documento, que, partindo do argumento técnico de que “Tudo está calculado do simples para o complexo. Uma secção vai servindo à outra, de modo que a matéria-prima bruta vai aos poucos sofrendo transformações sucessivas até que se ultimam todas as operações. Qualquer parada em uma secção repercute na secção que se lhe segue ou na que a precede, tornando assim o organismo fabril um todo único”, não poderia haver divergência entre a jornada dos adultos e a dos “menores”, pois isso prejudicaria o andamento técnico da produção.
Fato interessante é relatado por Werncek, que serve a diversas análises, foi o da multa aplicada a uma indústria têxtil na cidade de São Paulo, por ter se utilizado de menores de 14 anos durante a vigência do decreto mencionado. Na defesa que apresentou à justiça, a empresa trouxe como testemunhas quatro dos maiores industriais da época: José Erminio de Moraes, Fábio de Silva Prado, Nicolau Schiesser e Carlos Whately, os quais, de forma uníssona, insistiram no argumento de que:
Nas fábricas de São Paulo não é possível observar-se o disposto no Código de Menores com relação ao tempo do trabalho diário dos menores. Nessas fábricas, o trabalho é distribuído por secções de modo que o trabalho dos maiores fica dependendo do trabalho dos menores, de tal modo que um não pode prescindir do outro…9
Só “esqueceram” de dizer que a força de trabalho dos “menores” na indústria têxtil, dado o seu baixo custo, representava 60% do total da mão-de-obra empregada.
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Próximo capítulo: “3. O advento da legislação trabalhista (1930-1933): a posição dos industriais”
Capítulo anterior: “1. O legado da escravidão“
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NOTAS
[1]. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002, p. 170.
[2]. VARGAS, João Tristan. O trabalho na ordem liberal: o movimento operário e a construção do Estado na Primeira República. Campinas: UNICAMP/CMU, 2004, p. 282.
[3]. VARGAS, João Tristan. O trabalho na ordem liberal: o movimento operário e a construção do Estado na Primeira República. Campinas: UNICAMP/CMU, 2004, p. 282.
[4]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 111.
[5]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 111.
[6]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 113.
[7]. NOGUEIRA, O. Pupo. A indústria em face das leis do trabalho. Escolas Profissionaes Salesianas. São Paulo, 1935, pp.67 e 70.
[8]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 117.
[9]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 116.
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